Maria morou na tapera dos cabritos
Maria e Sebastião tiveram uma vida sem gentilezas. Comeram o pão que o diabo amassou. Isso quando tinha o pão. Passaram por todas as formas de necessidades. Fome, a mais constante. Tiveram 14 filhos. Deram educação a apenas um. Na década de 80, em Campo Mourão, não tinham onde morar. Aceitaram residir num barraco. Local onde dormia uma dúzia de cabritos. Os bichos saíram. A família entrou. Era uma tapera. Chão batido. Poucas e porcas madeiras nas paredes. Uma lona como teto. Era o que tinham.
O casal nasceu nos idos de 50. Paranaenses, acabaram na colheita de algodão. Sem estudo, foi lá onde buscavam a grana diária. Moravam em Formosa do Oeste. Junto, estava parte da família. Simone, uma das filhas, tinha 14 anos. Já labutava na roça de algodão. Trabalhavam hoje, pra comer ontem. Um dilema sem fim. Uma jornada que ainda dói na lembrança da viúva Maria. “Bastião”, morreu há nove anos. Vítima de câncer. Trabalhou até os últimos dias como coletor de recicláveis.
Maria Sueli Pereira está com 65 anos de idade. Segundo a filha, possui mais que isso. Em Campo Mourão, chegou sem nenhum documento. Toda a família jamais teve um. Haviam deixado os campos de algodão de Formosa do Oeste para, desta vez, tentar uma vida melhor na cidade dos “mourões”. Carregavam sacos velhos de roupa. Colchões sujos nas costas. Na época, ainda eram apenas oito filhos. Sem teto e sem rumo, pararam sob as torres de energia elétrica. Num gramado verde próximo ao centro. “Bastião” alçou duas ripas. Botou a lona velha sobre elas. Pronto. Já tinham onde dormir. Ficaram ali até a prefeitura retirá-los. O local era perigoso.
Então buscaram um lugar no Jardim Paulista. Uma conhecida ofereceu a tapera dos cabritos. Aceitaram. Não tinham escolha. Muito menos, opções. Os cabritos saíram. Dez pessoas entraram. No chão batido, colocaram os colchões sujos. Sacos de roupa empilhados num canto. Não tinham luz. Não tinham banheiro. Todos amontoados. Para seu azar, mais uma companhia. A fome. Maria acabara de ser mãe. A recém nascida não tinha roupas. Muitas vezes a fome era disfarçada com chás que ela fazia de folhas dum bosque próximo. A vida, não era gentil.
Simone lembra que era pequena. Quando chovia, tudo molhava. Poucas panelas ficavam do lado de fora. Era ali, no improviso, que a mãe preparava o alimento. Pessoas passaram a ajudar. Uma delas foi Clair de Almeida. Dona Clair era responsável por um projeto de doação de sopas às famílias carentes da cidade. Vendo a situação de miserabilidade de Maria e Sebastião, ela decidiu colaborar. Reuniu pessoas. Conseguiram doações. Em alguns dias, levantaram uma casa à família.
A casa foi construída sobre um terreno da prefeitura. Anos depois, o município retirou a família e a levou a uma nova moradia. Agora, no Jardim Condor. Por lá permaneceram por alguns anos. Mas Sebastião não gostava do bairro. Então, decidiu vender a casa. “Ele praticamente deu a casinha. Vendeu por R$250”, disse Maria. Hoje, viúva, ela mora com o filho mais novo. O único que estudou. Mas paga aluguel. E isso dói no bolso. “Meu sonho era ter uma casinha só minha. Seria minha maior riqueza”, diz. Ela vive da pensão do companheiro. Não consegue mais trabalhar. Com idade avançada, já teve dois AVC.
Simone é dona de um pequeno bar no Jardim Paulista. Tem quatro filhos e oito netos. Assim como outros 12 irmãos, jamais frequentou a escola. “Meu pai dizia que tínhamos que trabalhar. Senão, não teríamos como pagar as coisas”, disse. Além da educação, o pai também não se lembrou de fazer documentos. De uma forma simples, até meados da década de 80, a família não existia. Dona Clair, ao mesmo tempo em que ajudava com comida e moradia, providenciou a documentação de todos eles. Agora, já eram visíveis. Mas ainda, com muitos problemas.
Sem registro em carteira, a família teve que se virar. O pai saía para coletar material nas ruas. Os filhos maiores, batiam de casa em casa em busca de pequenos serviços. Lavavam calçadas. Limpavam quintais. Era o que tinha. Mas quando o pagode vinha, não era em dinheiro. Era em comida. “Naquele tempo um prato de comida era mais valioso que dinheiro”, lembra Simone. Ela não se esquece como é a fome. Explica que era um misto de dor e humilhação. A mãe, ainda chora ao se lembrar. “Tive que chorar escondida muitas vezes. Porque tinha vergonha de ver meus filhos passarem fome. Não tinha nada pra fazer. Panelas não serviam pra mais nada”, lamenta.
Maria olha o passado e vê como sua vida melhorou. Criou 14 filhos com todas as dificuldades do mundo. Mas criou. Apenas o mais velho não está mais vivo. Embora hoje ainda continue sobrevivendo, com novos obstáculos, não precisa utilizar mictório – sanitário com um buraco na terra. Não lava roupas na mina. Não toma banho com balde. Além disso, os filhos todos se direcionaram na vida. Têm suas famílias e seus trabalhos. O que não consegue mesmo, ainda é ter sua própria casa. Mas fiel a Deus, continua acreditando que um dia, conseguirá.