E desfez-se a injustiça contra Wellington e Patrícia
Imagine a cena: você transporta mais de 800 frascos de cera líquida, daquelas para polir automóveis. Seu objetivo é revender o produto, a fim de ganhar o pão de amanhã. Mas, num posto policial, é parado. Depois de averiguações – previstas em lei -, é encaminhado a uma delegacia de polícia. E, após minutos, está preso. Trancafiado a outros tantos detentos. A explicação: o produto contém cocaína em sua formulação. Passados 69 dias, vem o resultado da análise. Foi um equívoco. Não havia droga nenhuma, em nenhum lugar.
Se você conseguiu imaginar o cenário, saiba que não se trata de ficção. E aconteceu em Campo Mourão. Mas toda a injustiça, se desfez, ontem. Após permanecerem mais de dois meses presos, injustamente, acusados por tráfico de drogas, Welington Santos Moura, 24, e a esposa, Patrícia Varela, 25, tiveram seus produtos devolvidos. Através de uma sentença absolutória, a justiça entendeu que a denúncia é improcedente. Principalmente, após a constatação de que os produtos que transportava, não continham substância a base de cocaína.
O pesadelo do casal começou em 30 de outubro de 2020. Naquele dia, os dois deixaram Francisco Beltrão, no sul do estado, para ir até Marília, no interior de São Paulo. Mas a viagem terminou em Campo Mourão. Eram 15h42 quando foram obrigados a parar no posto da Polícia Rodoviária Federal. Na Saveiro que conduziam, os agentes encontraram mais de 800 frascos de cera automotiva. Produtos que revendiam para o seu ganha pão. Mas, sem mostrar uma nota fiscal, passaram a ser suspeitos de algo ilícito. E foi neste momento, em que foram apresentados ao inferno.
No posto policial, Welington alegou que permaneceu quase três horas no interior do veículo. “Eles fizeram uma abordagem normal. Mas pediram que ficássemos no carro. Também chamaram reforço. Em nenhum momento nos convidaram a ver o teste”, afirmou. Uma solução – coca test – foi colocada em contato com a cera líquida. Se ficasse na cor azul, estaria testando positivo para a cocaína. E assim, teria acontecido. A composição não só ficou azulada, como remeteu o casal à cadeia. Detidos em flagrante, pela Lei 11343 – Nova lei de tóxicos -, foram encaminhados à delegacia de Polícia Civil, permanecendo 69 dias encarcerados. Mesmo a justiça indeferindo diversos pedidos de soltura pela defesa, a liberdade do casal aconteceu, definitivamente, no dia 7 de janeiro.
Isso foi possível porque 12 amostras do produto foram remetidas ao Instituto de Criminalística do Paraná. O teste final determinou que não. A composição não continha entorpecentes em sua fórmula. Muito menos, cocaína. Os 12 frascos foram analisados por três diferentes técnicas. Na verdade, houve um grande equívoco, proporcionando o encarceramento de duas pessoas inocentes. Naquela tarde, de 30 de outubro, o casal se deslocava apenas para revender os produtos em postos de combustíveis de Marília. Lá, tinham parcerias com alguns estabelecimentos. Faziam testes do produto para motoristas e os comercializavam. No entanto, a viagem foi adiada.
Na delegacia de Campo Mourão, o casal alegou inocência. Diziam que eram somente vendedores de um produto de limpeza para carros, o Eco Flex Clear. E que não entendiam porque a substância indicou a presença de cocaína. Mesmo assim, o inquérito policial foi encaminhado à justiça. E lá, o juiz acatou o flagrante.
Advogada de defesa, Viviane Schon, disse que, um dia após serem presos, ela entrou com pedido de liberdade provisória. Mas foi indeferido. Mesmo alegando que os dois tinham endereços fixos, eram réus primários e, sem antecedentes criminais, tentou a revogação da prisão preventiva. Indeferido. Depois pediu um Habeas Corpus. Indeferido. Por último, tentou uma prisão domiciliar, com tornozeleira eletrônica. Indeferido. Sem mais recursos a pedir, o jeito foi aguardar o teste final no Instituto de Criminalística. Foi a salvação.
Imagem destruída
Welington nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Mas há seis anos, reside em Francisco Beltrão, no Paraná. Veio tentar uma nova vida. Ele disse que sabia que seria inocentado. No entanto, tinha esperanças que não demorasse tanto. Acreditava que passaria Natal e Ano Novo com a família. Mas isso não aconteceu. “Tudo que peço é justiça. Para que pessoas como eu, não sejam presos injustamente, novamente. Para que casos como o meu, não aconteçam mais uma vez. Não desejo isso para ninguém. A pior coisa é você saber que não deve nada a justiça e estar preso por alguma coisa que você não fez. Uma coisa que eu não sou, é traficante”, afirmou.
O casal tenta se recuperar dos constrangimentos causados pela detenção. Os dois permaneceram em celas comuns a outros detentos e correram riscos quanto à Covid. Welington tem bronquite. Além disso, deixaram de vender os produtos por quase seis meses. E mais: a prisão causou danos as suas imagens.
No dia em que “caiu” em cana, alguns presos passaram a desconfiar. Com sotaque carioca e, ainda, acusado de carregar quase meia tonelada de cocaína, Welington passou a ser “investigado” pelos próprios detentos. “Eles achavam que eu era um grande traficante. Ao mesmo tempo em que desconfiavam que eu pertencia a outra facção, me respeitaram”, disse.
Além disso, Welington lembra que, nos três primeiros dias detido, ficou numa espécie de cela chamada “quadrante”. “Fiquei sozinho, com fome, sede e muito frio. No dia da abordagem eu só tinha comido um pastel na hora do almoço. Fomos abordados de tarde e fomos parar na cela por volta das 23h”, disse. Segundo ele, pediu ao policial se poderia comer alguma coisa. “Ele disse que tinha somente água para nos oferecer. Fiquei até o outro dia, as 9 da manhã, sem me alimentar”, lembrou.
Na cela em questão, segundo ele, não havia nem ao menos papelão no chão para dormir. “Fiquei em pé, acordado a noite inteira. Tive que fazer minhas necessidades higiênicas em uma garrafa pet por três dias seguidos. Na cela não havia banheiro. Depois disso me colocaram juntos aos outros detentos. Mas não mudou muito. Tínhamos que dormir no chão, já que a cadeia estava super lotada”, informou.
Welington então passou a dormir num colchonete junto a outra pessoa, numa espécie de “Valete”, com as cabeças opostas. Um pra cada lado, e de frente ao outro. Sem se mexer. “Eu tinha medo de dormir e não acordar. As condições de higiene eram muito precárias. Não desejo isso a ninguém. Foram os piores momentos da minha vida”, revelou.
Embora já esteja em liberdade, o casal estava privado em vender os produtos. É que o carro apreendido, em outubro, foi liberado apenas agora, em abril. Além dele, as ceras também estavam apreendidas. “É o nosso único carro. Não estávamos podendo viajar para comercializar o produto”, explicou Welington. Ainda ontem, a advogada do casal disse que irá entrar com processos indenizatórios contra o Estado. De uma certa forma, a segunda parte da justiça, a ser feita.
Demora
De acordo com a advogada de Welington, Viviane, o pedido para a devolução do carro e, consequentemente, dos produtos, foi realizado no mesmo dia da sua liberdade. Mesmo assim, a justiça só devolveu o primeiro, ainda no dia 12 deste mês. “O Ministério Público se manifestou contrário a liberação do veículo, por entender que ainda existia algo ilícito no produto”, explicou. No entanto, ela lembra que o composto passou por três exames no Instituto de Criminalística do Paraná. Atestando negativo, a todos eles. “A perícia foi feita. Não há o que se contestar”, afirmou.
As alegações do Ministério Público aconteceram no dia 24 de fevereiro. “Considerando a aparente contradição existente no laudo pericial apresentado… é necessário esclarecimentos complementares ao órgão pericial, para que diga expressamente se foi ou não detectada a substância cloridrato de cocaína. E – se não – porque então a imagem demonstrativa entre as amostras, a princípio, sugere coloração azul compatível com a presença dessa substância no teste químico que foi realizado sobre o material apreendido”.
“Antes desse esclarecimento, conclui-se que não há condições seguras para afastamento definitivo da prática delituosa e, de consequência, restituição dos objetos apreendidos, sobretudo as substâncias sob questionamento”, pediu o MP à justiça.
Novas explicações do Instituto de Criminalística do Paraná, chegaram ao MP, comprovando mais uma vez, a inexistência de drogas na composição. Após a constatação final, a justiça deu a sentença, absolvendo sumariamente o casal. Então, a bordo de sua Saveiro, Wellington e Patrícia receberam os mais de 800 frascos da cera. Produtos que, se vendidos, chegam a um faturamento de R$20 mil. Grana que faltou nos últimos meses. Segundo eles, sem poder trabalhar, acumularam dívidas com boletos e faturas de cartões de crédito. As consequências foram desastrosas. As contas viraram uma bola de neve.
Ainda ontem, o casal estava feliz. Primeiro porque a injustiça foi desfeita. Segundo porque recuperaram o veículo e, agora, os produtos. “Deixei dez frascos com a turma da delegacia. E também um, ao juiz. Quero que vejam o quanto meu produto é bom”, disse Wellington.
A viagem, interrompida no dia 30 de outubro, foi retomada ainda ontem mesmo. Com os produtos sobre a carroceria, eles agora rumaram novamente aos estados do Mato Grosso do Sul e São Paulo. A vida tem que seguir. No entanto, no porta luvas, carregam uma cópia de suas absolvições, assim como recortes de jornais. “Estamos com medo de passar por isso de novo. Ainda estamos abalados psicologicamente”, disseram. Em tempo: de acordo com eles, a ideia é esquecer que Campo Mourão exista. “Trauma demais pra uma vida”.