Culpa se desculpa
Eu gosto de olhos que sorriem, de gestos que se desculpam,
de toques que sabem conversar e de silêncios que se declaram.
Machado de Assis
Culpo meu relógio, não o tempo que desperdicei, a pedir-lhe desculpa.
Minhas palavras inconvenientes ditas não as que guardei, mas as que pus fora sem perdão.
Culpo a escuridão, não a luz sem acender, clarear da escusa.
A comida que não provei, fome sem matá-la, do suicídio do sabor.
Culpo a falta de sono, medo de não acordar, de não ter sonhado.
A caneta que não escreve, papel ágrafo, do texto não escrito.
Culpo o copo d’água sem água no copo, sede que não cede.
A semente sem deixar que nascesse, planta sem cuidar, e outra que indevidamente colhi.
Culpo a memória do passado, o que reluto em lembrar, fazer de conta que esqueci.
Das velhas amizades que não envelheceram comigo, antes partiram, me repartem agora.
Culpo por não estar certo, sem saber quem não erra, de acertar junto com outros.
De não ser doce, amargar impaciente, sem paladar.
Culpo minha ausência, recusa da companhia, tento expulsar a solidão que não me abandona.
A direção que segui, do caminho que desviei, voltando antes de chegar.
Crer em tudo, descrer de mim, vã guarda das pessoas acreditarem em mim na vanguarda.
Culpo os amores que não me restaram, arrastados pelos desamores instados sem mim.
Por ter perdido o que antes quis ter, após a recusa ao pertencimento.
Culpo a desculpa que não pedi, pende o perdão que peço, peça da compreensão.
As roupas novas que não experimentei a provar que as velhas não me aprovam, mas visto.
Culpo os retratos familiares, vidrado, vidro quebrado que brado, sem me ver no espelho.
Da minha risada, gargalhada das pessoas, elas confiam no meu bom humor, não rio delas.
Culpo o que escrevi agora sem ter lido, desculpem-me como lido com as palavras.
Por fim, não pus fim ao que não começou, o amanhã me aguarda, sem que eu guarde o hoje.
Fases de Fazer Frases (I)
Quando alguém descobre que é laranja tem um baita pepino para descascar o abacaxi.
Fases de Fazer Frases (II)
O lapidador lapida a lápide. Lápide da dor.
Fases de Fazer Frases (III)
Aberração é berrar sem ação.
Fases de Fazer Frases (IV)
Para conseguir ouvir tudo é preciso fazer de conta que é surdo.
Olhos, Vistos do Cotidiano
São ossos do ofício, é o ditado. Túmulos abandonados há anos, muitos deles sem identificação alguma, estão sendo abertos e retirados os ossos. Os ossos recolhidos vão para o ossário do Cemitério São Judas Tadeu de Campo Mourão. Evidentemente que a ação é hoje mais do que necessária, naquela necrópole não tem mais espaços para enterros.
A minha saudosa mãe Elza não se esquecia de acender velas nesses túmulos abandonados, alguns não passavam de um monte de terra, cruz de madeira apodrecida, quando tinha. Ela rezava com fé em favor do desconhecido, ao menos para que ele não ficasse tão abandonado. .
Reminiscências em Preto e Branco (I)
Homens não carregam mais um pente, claro, para pentear os cabelos desalinhados pelo vento, por exemplo. Achava engraçado dois carecas não abrirem mão do pente. Ambos tinham o nome de Eloy, já falecidos, meu pai e meu. Desde que me tornei gente só conheci o meu pai já careca, tão poucos os cabelos na nuca. E o meu irmão, talvez para imitá-lo, tinha o pente dele, antes mesmo de começar a ficar careca, e careca ficou, com o pente, sempre.
Reminiscências em Preto e Branco (II)
Como um assunto puxa outro, assim também se dá com as palavras, que levam às outras. Penteadeira – móvel com espelho, gavetas e espaço para escovas, talcos, perfumes – ninguém tem, por isso dela não mais se fala. Minha mãe e irmãs tinham. Bem, só para rememorar o pente.