Desenterrar o passado é o futuro de Maria

Maria é uma mulher prestes a completar 60. O nome é bastante comum. Mas a sua vida, definitivamente, não. Fosse no cinema, sua história seria um roteiro original. Um filme impactante. Filha de um pai extremamente rude, apanhou diversas vezes e acabou separada da mãe e dos quatro irmãos, ainda menina. Um pesadelo que dura até hoje. Aos 15, engravidou, mas teria sido forçada a dar a filha. Num dos relacionamentos amorosos, sofreu agressões, espancamentos e humilhações. Já adulta e com três filhos, perdeu o mais novo, com um tiro na cabeça. Viúva por duas vezes, agora um único objetivo move a sua vida: encontrar a mãe, os quatro irmãos e, quem sabe, Rosenilda Cardoso, a filha dada a uma desconhecida nas ruas de Curitiba, há 45 anos.

A história de Maria Aparecida Cardoso começou em Manhuaçu, Minas Gerais, onde nasceu em 1961. Já aos seis meses, foi levada pelos pais até Borrazópolis, no Paraná. Lá, o casal teve outros quatro filhos: Roberto, Valdecir, Zebete e Nildete ou Valdete – Maria não se lembra ao certo. Família extremamente pobre, vivia da agricultura. “Minha mãe, eu e meus irmãos trabalhávamos na roça, desde muito pequenos. Mas bastava chegar em casa, meu pai apanhava todo o dinheiro e sumia ao bar. Passamos fome. Ele batia em todos nós”, lembrou.

Mesmo com tanto sofrimento, Maria Pereira Cardoso, a mãe, seguiu o destino ao lado do marido, Antônio Cardoso Sobrinho. Anos depois, já aos nove anos, Maria, a filha, se recorda em ter se mudado a Goioerê. Mais uma vez, todos continuaram “reféns” da violência do pai. Uma violência tão forte que ela preferiu não detalhar o passado.

Buscando novas oportunidades, sempre no campo, se mudaram agora à Mamborê. Lá, numa região conhecida como “Sete Peixeiras”, hoje “Riozinho” – o nome se deu em virtude da polícia, há tempos, encontrar sete peixeiras escondidas no mato -, a família se instalou. A vida continuava como sempre. Filhos e esposa trabalhando como bóias frias, enquanto Antônio, apenas aguardando a grana chegar. Os espancamentos e agressões morais chegaram ao limite.

Não suportando mais a situação, Maria, a filha, aos 14, acabou se entregando a um rapaz de 40 anos. Ele prometia levá-la até Curitiba. Oferecia uma nova vida. Enquanto isso, Maria, a mãe, também optou em chutar tudo. Abandonou o companheiro, pegou os quatro filhos, alguns poucos pertences e sumiu até Campo Mourão. Aquela foi a última vez que a filha viu o pai, a mãe e os quatro irmãos. De acordo com ela, o pai foi morto a tiros, no Lar Paraná, há 26 anos. Muito possivelmente, consequência da própria violência e arrogância. Nada menos por esperar, principalmente a uma pessoa descrita pela própria filha como um verdadeiro canalha.

Na capital

Levada com o homem de 40 anos até Curitiba, Maria pensava que tudo mudaria. Ela sonhava em ter uma vida tranquila, sem violência, longe das tempestades vivenciadas em casa. Mas era tudo uma farsa. Caiu num verdadeiro golpe. O velho truque. E acabou pagando caro por isso. Como o pai, o sujeito também a espancou. A humilhou. Por fim, a engravidou e depois desapareceu. Mais tarde, Maria descobriu que o homem tinha família, era casado e possuía seis filhos.

Foi então que, ainda aos 15, sozinha na capital, encontrou emprego como doméstica. Ela dormia no trabalho. Era uma casa bacana, próxima ao Parque Barigui. Mas a patroa, mesmo vendo a barriga crescer, não aceitava a ideia da criança na casa. Mas não teve jeito, não. No mesmo ano Maria foi ao hospital e lá teve uma menina. Após receber alta, se encaminhou a um cartório e a registrou como Rosenilda Cardoso. “Alguns dias depois, a patroa disse: ou você se livra dessa criança ou senão vão as duas pra debaixo do viaduto. Não quero ela aqui”, lembrou Maria.

Ainda adolescente e muito pressionada, Maria fez o mais difícil. Levou a filha até o centro de Curitiba e, num ato impensado, desesperado, deu a criança a uma total desconhecida. “Eu não aceito o que fiz. Eu era uma criança. Mas hoje, não me perdoo. Infelizmente, não consigo voltar no tempo. Meu coração está destruído até hoje”, afirmou.

Após fazer o que, pelas leis naturais, não se faz, Maria retornou à casa onde trabalhava. E por lá permaneceu mais seis meses. Dotada de uma frieza incalculável, a patroa não se deu ao luxo em perguntar o que teria feito com a criança. Mas os obstáculos do destino não cessavam. Determinado dia, a patroa viajou. Para o seu azar, o marido ficou. “Passei a ser assediada por aquele velho. Tinha que me trancar. Correr. Pra não acontecer o pior, decidi botar um ponto final. E desapareci de lá”, disse.

Agora, sozinha e sem conhecer ninguém, o destino a levava à rua. Ou quem sabe, para baixo do viaduto, o mesmo mencionado pela patroa. Desesperada, tentou se atirar à frente de um carro. Ainda desnorteada, se lembra de um braço a segurando. E de uma frase: “não faça isso. Tenha calma”. Chorando pelas ruas de Curitiba, ela visitou uma série de residências. Em todas, pedia clemência por um emprego. Na última, finalmente, foi ouvida. Era uma senhora que, vendo seu completo desespero, a convidou a entrar. Entre as lágrimas, Maria contou sua história e imediatamente, foi ajudada.

Lá, no Alto da XV, Passou a morar e trabalhar na casa de um policial e uma professora. Aprendeu a passar, lavar, e fazer uma boa comida. E mais que tudo, aprendeu que nem todos eram os seus inimigos. “O nome dela era Ana Maria. Foi um anjo enviado por Deus. Não só me ajudou, como salvou minha vida”, disse.

Volta ao interior

Aos 20 anos – 1981, Maria pediu alguns dias de folga e decidiu retornar a Mamborê. A ideia era procurar a mãe e os irmãos. A busca não prosperou. Mas foi o suficiente para reencontrar um antigo amigo: José Gonçalves. E dali, uma paixão brotou. Passadas algumas semanas, voltou à Curitiba. Pediu a conta e se embrenhou à Mamborê, definitivamente. O amor a chamava. E tudo deu certo. Se casou e com ele teve três filhos. Finalmente, as armadilhas da vida pareciam ficar fora de seu caminho. Anos depois o casal se mudou a Campo Mourão, onde a rotina dos dias seguia, pelo menos, até o ano de 2003.

Julho de 2003. Fábio, o caçula de Maria e José, se aproveitou de um descuido do pai e apanhou a arma. Então, ao lado de amigos, decidiu iniciar uma brincadeira estúpida. Era a tal roleta russa. Colocou uma bala no revólver e deixou a sorte agir. Não deu certo. Um tiro na cabeça pôs fim aos seus 17 anos. “Pedi ao médico que salvasse meu filho. Aquele foi um dos piores dias da minha vida. Ele morreu”, lembrou.

A angústia do pai foi tanta que, menos de cinco meses após a tragédia, ele não resistiu e morreu. Vítima de um infarto fulminante. “Ele já vinha se sentindo culpado pela morte de Fábio. Via um homem destruído por dentro. Ele morreu se sentindo culpado”, disse Maria. No mesmo ano, ela perdeu um filho e o marido.

Mas não há nada que segure as voltas da Terra em torno do sol. Passados nove anos, a viúva Maria conheceu Ivo. Segundo ela, um sujeito destemido, trabalhador. A relação caminhava de vento em popa. Juntos, traçaram planos em se casar. Tudo ia bem. Mas num dezembro de 2012, numa festa de confraternização entre vizinhos, uma treta aconteceu. Ivo não tinha nada a ver com a quizumba. Mas sempre camarada, decidiu agir. E se pôs a separar os valentões. Restaram três disparos contra a sua cabeça. Caiu morto, aos pés de Maria. Mais uma vez, a tragédia atravessava seu caminho.

Maria é uma mulher guerreira. Aprendeu a ser forte com as pedras atiradas pelo destino. Não sabe ler nem escrever. Frequentou pouco a escola. Durante a entrevista, narrou fatos impactantes. Quase, indescritíveis a estas páginas. E lembrando por tudo o que passou, desabou em choro.

Ela luta agora para tentar localizar o próprio passado. De alguma forma, se sente preparada em buscar o paradeiro da filha, Rosenilda Cardoso, que hoje tem 45 anos. Também deseja encontrar os irmãos, e quem sabe, a mãe, embora não saiba se ainda esteja viva. Ela sabe que não será uma tarefa fácil. No entanto, a quem a vida jamais foi gentil, um pouco mais de paciência, definitivamente, não fará mal algum.

Serviço

Se você conhece Rosenilda Cardoso, 45 anos, ou algum dos nomes aqui mencionados, ligue para 99947-6400