Os inimigos podem estar em casa
“Não, eu não fui ao velório. Não, eu não estava com ele nos últimos anos. Não, eu não me sinto culpada, nem estou preocupada com o que as pessoas pensem sobre isso. Me recordo de todos os momentos, mesmo que raros, nos quais me deu carinho, colo, aconchego e proteção. Não sei como eu conseguia deixar ele fazer isso já que, o comum era eu me sentir sempre amedrontada por ele. Assim também como não me esqueço de todo sofrimento, de toda violência física, emocional, moral e psicológica que sofri desde que me conheço por gente”.
O desabafo é de uma advogada. À surpresa de muitos, ela descarregou seus sentimentos nas redes sociais, dois dias após a morte do pai. Mas as palavras não se faziam escritas pelo luto, em si. Mas pelas feridas não cicatrizadas, deixadas pelo genitor. Aos 45 anos, ela ainda sente os traumas ocasionados. De certa forma, o “inimigo” estava muito próximo. No seu caso, dentro de casa. Nos relatos descreveu torturas psicológicas, violência física e uma dor difícil de esquecer. “Eu não sofri por abusos sexuais. Mas o que vivi foi tão forte quanto”, afirmou.
A narrativa da advogada que, por ironia do destino ou até mesmo, como consequência direta do que viveu, é hoje especialista na vara de família, retrata o que ocorre em muitos lares brasileiros. É bem verdade que o inimigo está bem mais próximo do que se imagina. Mas ainda existem maneiras, hoje, em se tentar evitar o pior.
A jovem advogada em questão, revela que sempre sofreu com as exigências severas do pai. “Na infância eu tinha um déficit de atenção. Apanhei muitas vezes por isso”, disse. Determinada vez, aos oito, levou uma tremenda surra apenas porque desenhou flores no caderno de matemática. Conta que o genitor, ao ver os rabiscos, a espancou compulsivamente. Ficou completamente roxa, com hematomas pelo corpo. “Não pude ir nem às aulas de ballet. A meia não cobria as marcas das agressões”, contou.
Já na adolescência, foi agredida em público. Ela tinha 16 quando foi com primos e amigas a uma “baladinha” da cidade, a antiga “Boatinha do Clube 10 de Outubro”. Lá, após se divertir, foi surpreendida com o pai, aos berros, a chamando de todos os nomes possíveis da vida “fácil”. Primeiro os xingamentos, depois a violência física e, por fim, a humilhação. “São coisas que você não se esquece. E não tem como curar feridas emocionais. Elas perduram”, disse.
De acordo com a psicóloga Alice Maria de Moraes, a situação do abuso infantil e de adolescente é bastante grave no Brasil. Geralmente acontece dentro dos próprios lares provocados por pais, irmãos e parentes próximos, causando problemas psicológicos, físicos e emocionais. Não tratados, perduram por longos anos.
“O dano é muito grande porque vem de pessoas em quem as crianças confiam e amam. O tipo de abuso mais comum é a violência física, que ocorre com objetivo de educar, castigar, causando na criança comportamentos agressivos, rebeldia, raiva e insegurança”, explicou a psicóloga. De acordo com ela, outro tipo de abuso comum é o psicológico, no qual a criança é humilhada, desqualificada, tratada com desdém, causando baixa autoestima e insegurança pessoal.
Por fim, e tão grave quanto, o abuso sexual. Segundo Alice, ele traz consequências muito severas ao abusado. “Algumas crianças, quando adultas, não conseguem mais ter relacionamentos amorosos. Se tornam pessoas introvertidas, e não confiam nos outros. Apresentam humor depressivo e desesperança. Os abusadores provavelmente foram abusados. Consequentemente quem foi abusado poderá se tornar um abusador e a violência continua”, revela.
Abusada pelo pai
Movido a goles etílicos, “F” sempre foi o carrasco da casa. Batia na esposa e, mais adiante, nos três filhos, todos pequenos. A violência surgia ao retornar da boemia, após noitadas em companhia de aguardentes, sempre presente a conversas à toa, em mesas de botecos decadentes. Ao chegar em casa, o inferno tinha início.
“F” foi descrito por uma das filhas como um verdadeiro canalha. E não foi em vão. Além de apanhar calada, passou a ser a segunda “esposa” do pai. Os abusos sexuais começaram quando tinha nove anos. E só terminaram aos 14. Quando decidiu fugir. “Eu não aguentava mais aquilo. No começo, por ser uma criança, pensei que fosse normal. Mas depois vi que tudo aquilo estava errado. Tive medo de falar com minha mãe. Então sumi de lá”, revelou.
Hoje adulta, ela tem repulsa do genitor. Ele morreu há 10 anos. E desde então, prefere não o reconhecer como pai. Os atos da violência foram responsáveis pela desestruturação de toda a família. “Jamais contei o que sofri à minha família. Até hoje carrego este fardo pesado somente comigo. Eu ainda não acredito que um pai possa ter feito isso com a própria filha”, disse.
No caso de abusadores sexuais, psicanalistas os descrevem como pessoas comuns, com profissões, famílias. De uma maneira geral, aos olhos da sociedade, pode ser considerado uma pessoa extremamente normal. Mas, se por um lado se fantasia aos moldes sociais, por outro, é um ser perverso. Engana a todos sobre sua parte doente. Para ele é tão excitante enganar quanto a própria prática do abuso. Num resumo, esconde-se vestindo uma pele de cordeiro.
O abusador, na maioria das vezes, usa da violência silenciosa e da ameaça verbal. É um ser covarde, com medo de quase tudo. E sempre irá negar o abuso quando descoberto. O pedófilo procura, frequentemente, a situação de exercer a função de substituo paternal para ter a condição de praticar sua perversão. Na verdade, seu distúrbio mental é compulsivo. Irá repetir seu comportamento como o mais forte dos vícios.
Sob a prática doentia do abusador, a criança passa a ficar aprisionada. E suas numerosas implicações psicológicas, apenas muda de lado quando se torna adulta. Ou seja, segundo descrições médicas, o abusado tem grandes possibilidades de se tornar um abusador. De uma maneira geral, um ciclo doentio, infelizmente, quase sem cura.
Como prevenir
Estudiosos explicam que os filhos devem saber sobre a existência de abusos sexuais e de como acontecem. É importante estabelecer regras de segurança, cada uma, baseada na idade deles. Precauções relativas ao abuso sexual devem se converter em uma parte natural das conversas entre pais e filhos.
Entre as sugestões de abordagens apropriadas de acordo à idade, recomenda-se já, aos 18 meses, ensinar nomes apropriados de partes do corpo. Entre 3 e 5 anos, é importante ensinar sobre as “partes íntimas” do corpo e a dizer “NÃO”, a qualquer oferta sexual. Para isso, é salutar respostas diretas a perguntas sobre sexo.
Entre 5 e 8 anos, pesquisadores indicam a explicação de normas de segurança, principalmente, quando estiverem longe de casa. Observa-se mostrar as diferenças entre um carinho bom e um carinho não apropriado. Além disso, é importante falar sobre experiências que o amedrontaram. Já entre 8 e 12 anos, deve-se ensinar regras de conduta sexual aceitas pela família. E por fim, dos 13 aos 18 anos, enfatizar sobre a violação, enfermidades sexualmente transmissíveis e gravidez indesejada.
Campo Mourão
O município de Campo Mourão conta com o Serviço de Convivência no contra turno em seis escolas. São cerca de 350 crianças atendidas ao mês. E é lá onde são ouvidas e, de certo modo, acompanhadas em sua vida sócio-educativa. De acordo com Cleuza Correia, chefe do Departamento Municipal de Assistência Social, infelizmente, os abusos contra menores não são raros. “Acompanhamos muitos casos, de vários tipos de abusos. E é sempre uma situação bastante lamentável”, disse.
Ela explica que, se até décadas antes o tal “tapinha”, por parte dos pais era comum – culturalmente falando -, hoje a coisa mudou. “Casos em que crianças sofrem por qualquer espécie de abusos são denunciados”, disse. Para ela, é importante que pais ou mães, se atentem aos sinais, a começar com comportamentos diferentes. Segundo ela, uma vez observados sintomas de possíveis abusos, é importante uma investigação. Depois disso, se comprovado, o caminho é denunciar ao Conselho Tutelar.
Serviço
O telefone do Conselho Tutelar de Campo Mourão é 99125-6727.