À imagem de Ivo Quennehen

Ivo Quennehen era, possivelmente, uma unanimidade entre seus conhecidos: um sujeito do bem. Destemido sonhador, sempre planejou alçar voos na área da comunicação. Mas não teve tempo. É que, entre a ideia e a concretização, estava o álcool. Ele ditou os caminhos, vencendo todas as batalhas de sua jornada. Não é exagero dizer que Ivo passou os últimos anos como a um fantasma. Desligado dos rituais humanos, viveu como a um nômade. Se esqueceu das responsabilidades terrenas, das condições higiênicas, enfim, do mundo careta. Fez mal apenas a si. E, entre a pressão social e as doses ininterruptas, preferiu a boemia. Viveu intensamente, mas acabou ilhado através de um vício difícil de se combater: o alcoolismo.

Ivo era o mais conhecido cinegrafista de Campo Mourão. Um dos primeiros. Ainda nos anos 80, foi o precursor na aquisição de câmeras. Era um apaixonado por imagens. Fez reportagens, casamentos, formaturas. Trabalhou com publicidade. Aos amigos sempre citava o sonho em desenvolver um filme. E, mais recentemente, um canal em uma rede social: o “QI na TV”. As ideias podiam até serem boas. O problema é que ele não se ajudava.

Andando sujo, com roupas molhadas, sem um mínimo de higiene, os amigos o questionavam: “Como você terá credibilidade desta maneira”? Mas não adiantava. Teimoso, dizia não mudar. Um outro conhecido, que preferiu não ter o nome revelado, disse que o colocou em seu carro por duas vezes. O objetivo era levá-lo a uma clínica de recuperação. “Quando falei onde o levaria, tentou pular do carro em movimento. Ele não aceitava se tratar. Se ajudar. Não teve piedade de si mesmo”, afirmou.

Apesar de viver como a um fantasma pelas ruas da cidade, sempre aparecia nas rodas do café da manhã com a imprensa local. E ali, no calçadão, ao lado dos seus, conversava e ditava seus ideais. Pedia um trocado aqui, um ali. E jamais recebeu um não dos companheiros da imprensa, por ande atuou anos antes. A vontade em retornar à cena da comunicação era tanta que, por inúmeras vezes, lá estava ele nos desfiles de 7 de setembro, ou 10 de outubro. Com a câmera sobre o ombro, mirava a objetiva ao cenário. O que ninguém sabia é que ele nada filmava. O equipamento não tinha bateria. E ele, sem grana para adquirir as fitas. Uma tragédia para um cinegrafista.

Muitas foram as vezes que dormiu pelas ruas. Literalmente, jogado à sarjeta. A situação degradante de Ivo foi ficando pior dia após dia. Morava numa casa de madeira, de propriedade da família, sozinho. Ele não deixava que ninguém o acompanhasse até o imóvel. Certamente, porque não desejava revelar a própria tragédia pessoal. Após sua morte, a casa foi vistoriada por amigos. E ali, o que se notou, foi que Ivo já havia morrido há anos. Lixo sobre lixo. Móveis destruídos. Restos de comida pelo chão. Condições inadequadas a um ser humano. Ivo vivia às sombras. Era um refém do próprio vício ou, um condenado pelo vício.

Amigos

Ivo escolheu, por decisões próprias, os caminhos percorridos. Por diversas vezes a família tentou ajudar. Mas ele nunca aceitou. E mesmo optando pelas vias não compreendidas, jamais roubou ou furtou. Era um sujeito de bem. O problema é que lia as placas, mas andava sem direção. Amigo de longa data, o cinegrafista Buana Magalhães conta que Ivo sempre o visitou no trabalho ou na sua casa.

“Quando eu ainda trabalhava na RPC, ele passava no escritório para dizer bom dia. Quando sai da TV, me visitava em casa. Atualmente, me esperava na TV Carajás, sempre nas horas das minhas saídas do almoço e do fim do expediente. Tinha um tino ao foto jornalismo. Me emociono em falar dele. Conversávamos sobre tudo, família, futebol, política local, regional, e federal, até internacionalmente. Ele era super bem informado. Dominava vários assuntos com propriedade”, disse. Nos planos em realizar o “QI na TV”, confessou a Buana que ele seria o seu primeiro funcionário. “Foi uma perda muito grande. Ele fazia mal pra si mesmo vivendo daquela maneira”, explicou.

Irineu Ricardo, também companheiro de profissão, conta que trabalhou ao seu lado algumas dezenas de vezes. Certa vez, num evento no interior de São Paulo, teve que retirar o amigo do camarim. Ao invés de filmar, decidiu beber. Em festas de casamentos, quando era contratado, ficava amigo dos noivos. Ao final, trocava cascos vazios de bebidas, que já levava no carro, por cheios. “Ele bebia o que podia. E com o seu carisma, ganhava a bebida no final da festa”, disse.

Mas a rotina antiprofissional do amigo fez com que Irineu não o levasse mais aos eventos. “Ele foi se entregando. Não tomava mais banho. Se vestia de modo bizarro. Para trabalhar não dava mais certo”, explicou. No entanto, pessoalmente, jamais o deixou. Quando Ivo necessitava, Irineu estendia as mãos. Doava roupas, celulares, equipamentos. “Era uma excelente pessoa. Mas o álcool o transformava”, revelou.

O outro lado

Com sangue norueguês, Ivo faria 62 anos agora, em 9 de novembro. Tinha apenas uma irmã, Lenir. E, se era bom e companheiro com os amigos, foi completamente diferente com a família. De um certo modo, um parente a ser esquecido. Sempre sob o efeito de álcool, brigou e bateu na própria mãe, inúmeras vezes. Quanto a Lenir, mesmo oferecendo ajuda, ele parecia se esquecer de sua piedade.

Conta ela que cuidou do irmão, desde os oito anos de idade, principalmente, depois que o pai os deixou, sem grana, para trabalhar em Mamborê. Sujeito inteligente, Ivo nunca reprovou na escola e, quando saiu, já estava habilitado em ciências contábeis. Já aos 18, iniciou a jornada no Bradesco. Entrou como contínuo, saiu como chefe de caixa. E foi nesta época em que começava a mostrar uma profunda depressão.

Conheceu uma garota com quem manteve um relacionamento de quase seis meses. Entre brigas e intrigas com a moça, conheceu a bebida. Não prestou. Por algumas vezes a surrou. E, não suportando mais a violência, decidiu dar adeus a Ivo. Agora angustiado, pegou um revólver e colocou à sua cabeça. Acabou salvo pelos colegas de trabalho. Há quem diga que a arma tenha falhado.

Já aos 20 anos, Ivo nunca mais deixou de beber. Tempos depois seguiu ao que realmente queria: coletar imagens. Em Curitiba, aos 24 anos, no apartamento da irmã, ele também tentou tirar a própria vida, agora, através de um enforcamento. A depressão e o desapego pela realidade fizeram com que a irmã buscasse tratamentos, de dependência química e psicológico. Nunca adiantou. Rejeitou todos. Mais tarde, ainda tentaria tirar a vida pela terceira vez, agora, tomando veneno. “Só que o veneno estava velho, vencido. Ficou mal, mas longe de morrer”, disse Lenir.

Já aos 40 anos, trabalhando numa chácara – festa de aniversário -, em Campo Mourão, Ivo foi picado por uma cobra Coral. Levado ao hospital, chegou escuro, com muitas dores. Mas também foi salvo após receber soro antiofídico. Na ocasião, Ivo morava apenas com a mãe, Laudelina, exatamente onde é a casa que residia até a última semana. Ela morreu em 2009. Ele ficou. E se afundou no abismo infinito da escuridão. Muito possivelmente, com remorso de suas atitudes com a pessoa que, certamente, mais o amou.

Nos últimos meses, sem grana, e bebendo às custas de esmolas, Ivo se esqueceu que era humano. Recolhia sacos de lixo e os levava para a casa de madeira da família. Lá, os vasculhava até encontrar restos de alimentos. O objetivo era alimentar os seus cães. O que sobrava, deixava sobre a cama, banheiro, sala. O imóvel não acolhia mais a Ivo. Acomodava um fantasma.

Ele adorava crianças – não suportava a ideia de alguém as maltratar -, e animais. Já chegou a abrigar 10 cães no imóvel. O preferido era um vira-latas chamado “Sarninha”, que andava ao seu lado pela cidade. O amigo morreu há algum tempo, levando Ivo às lágrimas.

Lenir lembra que Ivo sempre ia até sua casa para pedir dinheiro. Ela acabava cedendo. “Eu o ajudava com roupas e comida. Preferia não dar dinheiro. Mas em fevereiro deste ano, prometeu fazer mal pra gente. Fingi chamar a polícia e ele desapareceu. Nunca mais voltou à minha casa”, disse.

Ivo morreu por volta da 1h da manhã do dia 26 de outubro. Com falta de ar e dores no peito, andou até a casa de uma prima. Pediu remédios e dois copos de água. A prima insistiu para chamar o Samu. Mais uma vez, ele não aceitou. Após a rápida prosa, deu cinco passos e caiu, batendo o rosto na calçada. Familiares ainda tentaram uma última massagem no coração. Mas já era tarde. A vida havia se esvaído do corpo franzino e doente de Ivo.

Depois de sua morte, Lenir fez uma limpeza da casa. Foram retirados 57 grandes sacos de lixo. Nada foi reaproveitado. A não ser as memórias e lembranças da época em que um menino saudável e sonhador ali morou.

Serviço

Se você é ou possui algum amigo, parente ou conhecido alcoólatra, procure ajuda imediatamente. (042) 3222-2233, Grupo Redenção – 17, em Campo Mourão.