Sob o mesmo teto, Marta convive com sua maior inimiga: a esquizofrenia do filho
Campo Mourão, outubro de 2023, 22h. Naquela noite, Marta – nome fictício de mãe que prefere não ter o nome revelado -, estava em casa, sozinha. O filho mais novo, de 19, havia saído para trabalhar. O mais velho, de 21, se localizava numa lanchonete. E ligava insistentemente, pedindo dinheiro a um lanche. Com a grana em falta, a mãe enviou um Pix de R$ 20,00. Mas ele desejava mais. Então, descontrolado, retorna à residência. Com medo, a mãe se tranca no quarto. E, antes que ele quebrasse a porta, a mãe a abriu. “Onde está o dinheiro? Eu quero mais. Me dá”, gritava. Desesperada, a genitora dizia que não havia mais. Mas ele não acreditava. E, após revirar gavetas, armários e guarda roupas, fez o que nenhum filho pode fazer: ele a espancou de todas as formas possíveis. Como resultado, acabou na cadeia. Enquanto ela, no hospital.
André – nome fictício do filho de 21 anos -, não é usuário de drogas. Nem de álcool. Muito menos de qualquer outra substância alucinógena. Ele simplesmente mantém um quadro de esquizofrenia, atestado por laudos médicos. Até os 17 anos era um menino normal. Comum a tantos outros de sua idade. Mantinha amizades na escola, brincava na rua, andava de bicicleta. E frequentava a igreja, onde se mostrava bastante participativo. Mas, num dia desses, acordou diferente. Passando a adotar um comportamento atípico, no mínimo, estranho à educação antes demonstrada.
Na escola, acabou expulso. Criou várias teorias da conspiração, acreditando ser perseguido por colegas e professores. Foram inúmeros os conflitos. E foi ainda aos 17 quando iniciou as primeiras agressões à mãe. “Me lembro de ter feito uma salada deliciosa no almoço. Ele a olhou, pegou o prato e jogou na minha cara. E disse que eu não tinha perguntado se ele queria a salada. Foi um choque pra mim”, afirmou ela.
Preocupada com o seu comportamento, Marta o encaminhou a uma psiquiatra, constatando se tratar de uma esquizofrenia. Muito possivelmente, genética, herdada do avô, o pai de Marta. “Na minha família tive dois casos da mesma doença. Do meu pai e de um irmão”.
Agora diagnosticado e medicado, André vivia numa balança diária de emoções. Com os remédios, se controlava. Mas quando decidia por não tomá-los, surtava. E as crises só pioravam. “Sempre as suas crises foram aumentando. E com elas, as agressões e a violência. Por duas vezes quase morri. Não tenho mais vida. Hoje, durmo trancada, com medo. Adquiri síndrome do pânico. Estou desesperada. Moro com o inimigo, no caso não meu filho, mas a doença dele. Ele não tem culpa por ser assim”, disse.
Tanto é verdade que, após as crises, e sob medicamentos, André volta a ter consciência dos seus atos. Por várias vezes, em pelo menos seis internações a que foi submetido, confessou às enfermeiras o desejo em não mais morar com a mãe. “Ela não merece o que faço com ela”, disse. De acordo com Marta, a doença faz com que o filho escute vozes. E são elas quem o direcionam ao comportamento monstruoso, principalmente, com a mãe.
Em casa não temos quase nada. Ele já quebrou tudo. Já perdi empregos, amizades, relacionamentos. Vivo em função dele. Não consigo mais trabalhar. Antes eu era quem mandava. Tinha meu próprio negócio. Hoje, sou funcionária, vivendo de comissões. Devo a agiotas, banco, amigas e a muitos outros lugares. Chegou a hora de pedir ajuda. Não consigo mais cuidar dele sozinha. Minha cabeça não funciona mais”, desabafou.
Ainda no ano passado, André quase tirou a vida do irmão. A doença fez com que enxergasse um demônio na figura do mais novo. Então, o segurou pelo pescoço, o sufocando. Não fosse a mãe, uma tragédia teria acontecido. E as alucinações e conversas de conspirações continuaram. Até algum tempo, quando Marta tinha um salão, ele adentrou ao local, dizendo barbaridades às clientes. Não durou muito, ela teve que encerrar o negócio.
Se o enredo já não fosse o bastante, nos últimos tempos ele passou a desenvolver uma outra alucinação. E pesada. Segundo Marta, o filho acredita que ela seja a sua namorada, cuja cachorrinha de casa, seria a filha deles.
Medida protetiva
Mas naquela noite de outubro, após muito apanhar, Marta se dirigiu até a delegacia. Lá, não só viu o filho ser preso, como clamou por uma medida protetiva contra ele. Mesmo com o coração dilacerado, era o momento de sobreviver. Ela não podia mais conviver com a possibilidade de perder a vida. E ganhou a proteção. Agora, o filho não podia mais se aproximar dela. Naquela noite, ela foi hospitalizada em decorrência das agressões. Foi muito machucada na cabeça, pernas e partes íntimas.
“Três dias depois de ser preso, policiais me ligaram, dizendo que ele havia sido solto. Entrei em pânico. Me tranquei em casa, com medo de sua reação. Foi quando ele apareceu no portão dizendo que só queria pegar algumas coisas. E depois iria embora”, lembrou Marta. Agora com os poucos pertences em mãos, André desapareceu. E foi localizado na Casa de Passagem. Lá, permaneceu durante 20 noites. Durante o dia, passava na rua, vivendo ao som das marquises, como um verdadeiro invisível.
E mesmo com a medida protetiva, Marta quebrava as regras. Às sombras, deixava marmitas ao lado de onde ele dormia. “Não posso abandoná-lo. É difícil demais que as pessoas entendam isso. É um sentimento que só as mães entendem”, explicou. No entanto, vendo o estado em que o filho se encontrava, estendeu a mão, mais uma vez. E num ato extremo, o levou até Luiziana, onde o pai dele vive. “Aluguei uma casa lá, e o deixei com algumas coisas. Também o levei até o posto de saúde, já que que mantinha algumas feridas na perna. E acabei repreendida”, disse.
Marta conta que assistentes sociais a repreenderam por abandono de incapaz, o que fere a legislação brasileira. E que iriam repassar o caso ao Ministério Público. “Eu disse a eles a minha situação e que tinha medida protetiva. Mas eles não entenderam. Então sugeri que fossem atrás do pai dele, que morava a três quarteirões dali. Mas parece que ninguém foi”, afirmou. Mas, sem saber o que fazer, Marta decidiu mais uma vez estender a mão. E o levou de volta à sua casa, em Campo Mourão, onde tudo voltaria como antes. Um círculo vicioso. Não é exagero dizer que Marta é como uma pipa em meio a um furacão.
Diante de tudo o que viveu até agora, Marta pode ficar sem teto. Além do aluguel atrasado, vizinhos já estão se mobilizando e pedindo que ela deixe o sobrado onde mora. “Eles vêem o que acontece. E pensam: se o meu filho me agride, imagine então com eles. Eles estão com medo. E eu até os entendo”, disse. No entanto, o maior de todos os riscos, quem ainda corre é ela, a mãe.
André
André já foi internado seis vezes, sempre com períodos entre 45 e 60 dias. A última delas aconteceu em 5 de janeiro, quando foi à uma clínica psiquiátrica de Curitiba. Na ocasião, mesmo com a medida protetiva, Marta foi junto, ao seu lado, na ambulância. Enquanto ele viajava, amarrado à cama, Marta chorava. Ele permaneceu internado até a última semana, dia 19 de março. “Voltamos juntos de novo, lado a lado, na ambulância. Sempre que ele deixa as internações, se mantém calmo, equilibrado. Pelo menos nos primeiros dias. Depois, tudo começa novamente”, explicou.
A mãe está no limite. Dias desses foi encontrada caída, em casa, após ingerir vários comprimidos do filho. Ela estava com pensamentos suicidas. Mas acabou salva por uma amiga, que a socorreu às pressas, a levando à UPA. Durante toda a entrevista a este repórter, Marta chorou, tremeu, se lamentou e até reconheceu alguns erros. “Eu preciso que o estado brasileiro me ajude com uma internação compulsória, de longo prazo”, disse. De acordo com ela, a medida seria necessária para sua própria segurança.
O que dizem a Justiça e a Saúde
“É uma situação bem grave”, afirmou o promotor de justiça Marcos Porto Soares. Segundo ele, é um caso que o estado deve interná-lo compulsoriamente. “Existe uma lei de internação compulsória. Tem que passar esse caso à Secretaria de Saúde do município para poder encaminhá-lo ao internamento compulsório”, explicou.
Procurada, a Secretária de Saúde de Campo Mourão, Camila Kravicz Corchak, disse que até o ano passado, André era paciente de Campo Mourão e vinha sendo acompanhado. Mas a partir do momento em que foi internado em uma clínica de Curitiba, no início deste ano, através do município de Luiziana, o contato se perdeu.
No entanto, sabendo agora que o paciente está de volta a Campo Mourão, a secretaria já procurou a família. “Já falamos com a mãe e pedimos que ela vá até o CAPS 2 para retomar o atendimento”, afirmou Camila.
O relato de uma amiga
Vizinha, amiga e testemunha do drama vivido por Marta, Melissa – também nome fictício -, lembra de um período em que arrecadou cestas básicas à família. Na época, Marta estava muito machucada pelas agressões do filho. “Ela não tinha o que comer em casa. Deixou o filho mais novo e ficou 15 dias na UPA, ao lado do André, na espera de uma vaga num hospital psiquiátrico. Na ocasião, inclusive, ele tentou matá-la dentro da UPA. Além dela, também agrediu um médico”, disse.
Devido a ausência no trabalho, a grana acabou. Foi então que Melissa conseguiu as doações através de amigos. “Levávamos comida pra ela na UPA e comida ao filho mais novo, em casa”, lembrou. Hoje, Melissa mora em Londrina. Mas mesmo longe, ainda a ajuda.
Quando era vizinha, em Campo Mourão, a amiga a abrigou numa das severas crises do filho. No dia, após apanhar, Marta correu ao apartamento dela. Ao abrir a porta, André também entrou. E, na tentativa de fechá-la, acabou sendo agredida, inclusive, com um corte no antebraço.
Melissa explica que André também vê demônios na figura da mãe. E seria esse o motivo de tantas agressões. “Ele diz que quer exorcizá-la. Não foi uma nem cinco nem dez vezes que a socorri. Foram inúmeras vezes. O caso é muito sério”, explicou.
Processo na Justiça pede afastamento do filho de casa
Numa estrada repleta de vias sem saídas, Marta buscou a advogada Polyana Silva Pereira. Juntas entraram com uma ação na justiça pedindo não só o afastamento do filho de casa, mas como a responsabilidade do seu acompanhamento pelo pai ou outro membro da família. “Ela não tem mais condições psicológicas para cuidar do filho. Ele causa perigo à ela, principalmente, por ser mais forte e, por ver nela, a culpada de seus problemas”.
De acordo com Polyana, tudo isso é muito ruim para Marta. “Porque ela é também a mãe dele. Mas definitivamente, em casa, ela corre todos os riscos. Ele a culpa por muitas coisas”, explicou. O processo continua tramitando na justiça.
Em tempo
O CREAS de Luiziana informou que “Marta” não procurou o órgão pessoalmente. E por este motivo, não pode dar um suporte maior ao caso. A reportagem também ligou ao pai de André. Ele não retornou às mensagens. O espaço está aberto, caso o mesmo queira se manifestar.
Na manhã da última segunda-feira (25 de março), Marta levou o filho ao CAPS 2, em Campo Mourão. Mais uma vez, após se descontrolar, André foi levado à força ao atendimento na UPA. Mas, ao invés de ser internado pela sétima vez, a unidade deu alta. A mãe está com medo de voltar à sua casa.