Prefeito, enfermeiro e o desejo em ser médico

No pequeno município de Nova Tebas, onde parte das ruas centrais nunca foi asfaltada e os índices de mortalidade infantil são de 22,47 – a cada mil nascidos vivos -, as supostas intervenções médicas do prefeito Clodoaldo Fernandes dos Santos estão na boca do povo. De uma certa forma todos comentam. Mas poucos falam. Ali, o medo em relatar o que acontece ainda é uma espécie de tabu. Então, buscando provar os “boatos”, o vereador Vanderley Borget iniciou sua própria investigação.

Nova Tebas, 13 de junho de 2024. Naquela segunda-feira, às 11h51, Borget foi até o hospital municipal. Lá, na recepção, fez um vídeo com o próprio celular perguntando a atendente quais médicos estavam de plantão. A profissional apontou dois nomes. A seguir, questionada se o prefeito também participava, afirmou que sim. Juntos, segundo ela, os três atuavam no procedimento de uma cesárea.

Fosse meses antes, nada a estranhar, já que o gestor frequentava o curso de medicina em uma faculdade de Campo Mourão. Sendo assim, estaria apto a participar de alguns procedimentos, obtendo inclusive, carga horária como estágio. No entanto, com a matrícula trancada desde o início deste ano, legalmente, estaria impedido de tais acompanhamentos. “Para que o acadêmico de medicina participe de atos médicos na condição de aluno, é necessário o devido convênio com a instituição de ensino. E sempre sob supervisão direta e presencial”, informou em nota, o Conselho Regional de Medicina (CRM).

Naquele 13 de junho o hospital municipal de Nova Tebas realizou duas cesáreas. As suspeitas sugerem que o prefeito tenha participado das duas. A TRIBUNA procurou as famílias. O primeiro procedimento foi feito em uma adolescente de não mais que 16 anos. A tia da menina não deixou que ela respondesse as perguntas da reportagem. Aliás, a nenhuma delas. Na casa de madeira bastante precária, a garota segurava a filha com muito zelo. A cena lembrava uma criança brincando com sua boneca.

“Olha aqui seu moço, não vamos falar nada. O prefeito é muito bom pra nós. Sempre ajudou muito”, disse a mulher. Mas mesmo não querendo narrar o procedimento médico, ela não negou a participação de Clodoaldo na cesárea. E também não poderia. Na ficha do hospital consta o nome do prefeito, mas como enfermeiro.

No segundo caso, a cesárea foi realizada na esposa do ex-diretor do próprio hospital de Nova Tebas, José Vagner Lino. Especificamente sobre o dia 13, ele não quis falar. Orientou apenas que estava de atestado médico. Mas explicou que diariamente o prefeito visita a entidade. “O prefeito sempre foi presente na organização do hospital, desde quando era secretário de saúde. Além de enfermeiro concursado no município, ajuda a equipe de enfermagem quando necessário”, disse.

De acordo com ele, a experiência de Clodoaldo como profissional de saúde é valiosa em momentos de alta demanda, emergência e na adaptação de novos profissionais. “Ocorre que no momento eleitoral as perseguições tornam-se perversas e covardes”, afirmou ele.

Clodoaldo aceitou falar com este repórter. Numa boa conversa e sob intenso frio dos últimos dias, na mesa de um bar, ele negou qualquer possível ato médico de sua parte. “Nunca fiz tais procedimentos. Nunca apliquei anestesia de raqui. E também não utilizei o hospital para cargas horárias ao curso de medicina”, afirmou. Sobre o dia 13 de junho, garantiu que esteve no hospital, sim. Mas que não “colocou a mão na massa”. Mas ao contrário do que disse, uma mulher narrou que o prefeito atuou em sua cesárea, anos antes.

Nova Tebas, 28 de janeiro de 2022. A jovem que não quer ser identificada relatou que foi até o hospital para ter o filho. “O prefeito foi quem aplicou a anestesia de raqui. O médico mostrou o local e ele aplicou. E, após o meu filho ser retirado, foi ele também quem me costurou. Sei disso porque na hora o médico ficou andando perto de mim. Naquele dia, o prefeito ajudou bastante”, afirmou.

A mulher explicou que não sabia da presença do gestor na unidade de saúde. “Não assinei papel nenhum. Não me avisaram absolutamente nada. Quando fui levada até o centro cirúrgico, ele estava de costas para mim. Nem me cumprimentou”, disse.

Em sua defesa o prefeito explicou que, em algumas situações participou apenas como enfermeiro e instrumentador. “Jamais agiria com um risco desnecessário. Não iria fazer o que não posso”, afirmou.

Prefeitura de Nova Tebas
Prefeitura de Nova Tebas

Clodoaldo

Clodoaldo nasceu no município de Grandes Rios. Mas cresceu no distrito de Poema, em Nova Tebas. Lá num berço de pais evangélicos – Congregação Cristã -, decidiu ser enfermeiro. Então passou a cursar Enfermagem em Campo Mourão. Se formou em 2009. E, no mesmo ano, já atuava como coordenador de equipe de família. E um ano depois, já aos 22 anos, foi convidado a ser Secretário de Saúde do seu município.

Se considerando um sanitarista por vocação, como secretário, chegou a morar dentro do próprio hospital municipal por um ano e meio. “Na época solicitei a morada à prefeita. A ideia é que, lá morando, poderia atuar diretamente nas soluções da nossa realidade. Ela concordou. Então montei um pequeno quarto e lá fiquei”, disse. Durante a sua estada sob o teto hospitalar, dirigiu ambulância e, inclusive, lavou a caixa d´água.

O prefeito lembra que muitas foram as conquistas como secretário. Entre elas a obtenção de uma equipe do Samu. Além de uma ampla reestruturação do próprio hospital, de 2013 a 2016. “Chovia mais dentro da unidade do que fora. Não tinha remédios. E ampliamos o atendimento de saúde a outros distritos, como Poema”, disse.

Devido a religião dos pais, aos 10 anos acabou se tornando músico. Músico da igreja. Começou tocando trombone. Depois tuba sinfônica. E somente anos depois soube que a sua entrada à política, viria de encontro aos ensinamentos que tanto cultivava. “Minha religião não permitia minha entrada à vida pública”, revelou.

Mesmo assim, o choque foi inevitável. Aparecendo como um jovem dinâmico na saúde e uma promessa política, não demorou para ser escolhido como pré-candidato a prefeito de Nova Tebas. Colocou o nome a disposição do PSC e, em 2017, aos 28 anos, se sentou à cadeira de gestor pela primeira vez. E, devido ao trabalho com ênfase mais à saúde, acabou reeleito em 2021. Uma ascensão meteórica e poucas vezes vista por aí.

Segundo Clodoaldo, pelo seu trabalho, passou a ser presidente por seis anos do Consórcio de Saúde de Ivaiporã, que rege 21 municípios. Também em 2019, recebeu uma honraria do Conselho Regional de Enfermagem (Coren). Com tanto sucesso, principalmente na saúde, restava agora concretizar o sonho em ser médico. E foi o que fez.

Medicina

A bem da verdade, Clodoaldo tem o desejo de ser médico. Ele diz que não. Mas prova disso foi o empenho em frequentar a faculdade de Medicina em Campo Mourão. Adentrou ainda em 2020 e, de acordo com ele, ia de duas a três vezes por semana. Mas a prática acabou sendo descoberta por um vereador de Nova Tebas. “O curso é integral. Então como pode um prefeito abandonar a cidade para ficar estudando no horário em que tem que ser prefeito?”, questionou Vanderley Borget.

Campo Mourão, 9 de agosto de 2023. O vereador o seguiu desde Nova Tebas. E fez imagens e vídeos de Clodoaldo no campus da faculdade em Campo Mourão. Na ocasião, ele estava em posse do carro oficial do município e acompanhado pelo motorista, pago com impostos dos contribuintes. Depois do flagrante, o denunciou ao Ministério Público.

Dias após a denúncia, 14 de setembro de 2023, o MP notificou o prefeito com uma recomendação administrativa. “Considerando os documentos acostados ao inquérito que demonstram o exercício de atividades estritamente particulares em carga horária absolutamente incompatível com a função de Gestor Municipal, abstenha-se de utilizar veículos da frota municipal em proveito próprio”. Além disso, o MP ainda o orientou a não mais se utilizar de motoristas da prefeitura, em claro desvio de função. Além de recomendar que cessasse quaisquer atividades particulares com carga incompatível com a função de prefeito. O inquérito continua em tramitação. Nos próximos dias testemunhas começarão a depor.

Com todo o enredo agora denunciado, Clodoaldo achou por bem trancar a matrícula de medicina e se concentrar à cadeira a que foi legitimamente eleito. “Quando ia à faculdade, ía com o meu carro. Neste dia específico, fomos a Campo Mourão tratar de outros assuntos”, revelou. Segundo ele, após deixar a missão como prefeito – ao final deste ano -, pretende retomar o curso de medicina.

Jogo político sem ideologia

Na pequena e pacata Nova Tebas, onde todos se conhecem e cada um tende politicamente para um lado, não são raros os embates. Clodoaldo sabe que um grupo político não suporta o outro. E lá, a vida sempre foi assim, principalmente, em anos eleitorais, quando a língua corre solta. A bem da verdade, para se chegar ao poder, mesmo de uma cidade pobre como Nova Tebas, vale qualquer coisa.

No município que não chegou ainda nem aos seus sete mil habitantes, a ideologia partidária, definitivamente, nunca existiu. Ali, políticos desfilam da esquerda à direita, ou vice-versa, como se fosse uma prática comum. Pelo menos em dois casos recentes, um saiu do PT e foi ao PL. E outro no caminho oposto, saindo do PMDB, passando pelo PL e agora, filiado ao PT. “Não existe ideologia nenhuma. Trata-se apenas de um jogo político”, entende Clodoaldo.

Prefeito

Durante sua estada como gestor municipal, pelo menos cinco parentes de Clodoaldo continuam na listagem de servidores públicos. Deles, três são concursados. A prima, enfermeira. A irmã, psicóloga. E o primo, vigilante. Dos comissionados listam o seu pai, Secretário de Infraestrutura e Logística e outro primo, assessor de fiscalização de contratos.

Sobre os comissionados há um ditado: “A prática é legal. Mas imoral”. “E se fosse com você. O que você faria se viessem pedir?”, questionou Clodoaldo. Para ele, tanto o nome do pai como do primo, vieram a dar a ele mais confiança na transparência de sua administração.

Em tempo: pelo menos três pessoas entrevistadas na cidade disseram que a saúde do município está boa. Com serviços e remédios satisfatórios.

Nota do Conselho Regional de Medicina (CRM)

O CRM-PR informa que não pode comentar casos concretos que possam envolver eventuais processos fiscalizatórios ou que possam gerar questionamentos relacionados à ética médica. Importante destacar que o exercício da profissão médica somente é possível com registro no Conselho de Medicina de sua jurisdição. Para que o acadêmico de Medicina participe de atos médicos na condição de aluno, é necessário o devido convênio com a instituição de ensino e sempre sob supervisão direta e presencial. No caso específico mencionado, de Nova Tebas, o Conselho já realizou fiscalização presencial, e as sindicâncias e processos no CRM-PR tramitam em sigilo até sua conclusão.