Lachinski, o homem que dá trabalho aos anjos de sua guarda

Ainda recém-nascido, José Lachinski foi deixado sob os cuidados de uma babá. Então, num descuido, ela teria dado a ele uma mamadeira contendo uma espécie de “vinho aguado”. Embora não se recorde, a mãe sempre narrou a história. E dizia que havia sido internado em um hospital às pressas, chegando a correr sérios riscos de vida. Este seria apenas o primeiro aviso. Um sinal de tudo o que passaria a sofrer no decorrer dos anos. E como um prelúdio, sua caminhada não foi das mais fáceis.

A verdade é que, aos 74 anos, Lachinski não sabe como está vivo. Desde a infância sofreu inúmeros acidentes, cujas sequelas carrega até hoje. Sua história em Campo Mourão começou com o pai, Vicente. Carpinteiro, deixou a região de Curitiba, nos anos 50, para construir o prédio da Santa Casa. “Meus pais já estavam na cidade, em 50. Eu nasci na zona rural, onde depois, foi instalada a boate América”, disse.

Aos seis anos, brincando junto a outros meninos, foi atingido por uma estilingada de mamona no olho direito. A família já residia onde se localiza hoje o Centro Catequético. No momento do impacto, tudo escureceu. Então foi levado a um hospital de Maringá. Lá permaneceu por oito dias, levando cerca de 200 injeções. E quando saiu, foi informado que a lesão era irreversível. Mesmo os meses a seguir, por quase um ano de tratamento, de nada adiantaram. O menino havia perdido a visão de um dos olhos.

Menino, Lachinski estudou até a quarta série do fundamental no Colégio Marechal Rondon. Depois parou. Já adolescente começou a trabalhar. Foi servente de pedreiro dos 10 aos 14. Mas viu que a profissão não era pra ele. Então retornou ao sítio, onde morou com os pais e os irmãos. E lá, as coisas pioraram. Pelo menos na sua falta de sorte.

Em 1966, aos 16 anos, o garoto ajudava o irmão na retirada de algumas árvores centenárias do sítio. Não prestou. Uma delas tombou sobre Lachinski. Na queda, ficou espremido. Mas não morreu porque uma grande pedra amenizou o impacto sobre seu corpo. Mesmo assim lesionou a coluna. O fêmur quebrou. Perdeu três dentes no próprio joelho. Teve o peito deslocado. E saiu sem a pele de trás da cabeça e das costas. Não bastasse isso tudo, também machucou seriamente um dos ombros, sofrendo dores até hoje.

Retirado pelo irmão, foi carregado por 200 metros. Mas não suportando as dores, pediu que parasse. Então vizinhos apareceram. E o colocaram sobre um cobertor. Foi carregado novamente por mais dois quilômetros, até chegar a casa de um morador que possuía um carro. Então, a bordo do Jeep, foi encaminhado à Maringá. “A estrada não era asfaltada. Nunca sofri tanto na minha vida. Tudo doía. Ainda mais correndo naquela buraqueira”, lembrou. Segundo ele, o tio que o levou disse na época: “Doeu em mim”. Após deixar o hospital, ganhou uma “armadura” de gesso por 90 dias. Ficou praticamente apenas com a perna esquerda de fora.

De volta à cidade

Após estar reabilitado do acidente, quase fatal, Lachinski decidiu dar um basta no campo e retornou às atividades na cidade. Então, aos 18 voltou à construção civil fazendo um grande muro. Mas sem receber o combinado, parou. E prosseguiu agora, à empresa Auto Peças Mourão. E foi neste período que decidiu também continuar os estudos. Em 74 concluiu o curso técnico de Contabilidade, embora jamais tenha exercido.

A vida profissional foi longa no setor de auto peças, deixando a empresa após sete anos. Entrou menino. E quando saiu já era um homem. Aliás, saiu como um legítimo torneiro mecânico. E dos bons. Em 1975 Lachinski se dobrou ao amor. E quando menos esperava, se casou. Foi também neste mesmo ano em que recebeu uma proposta de sociedade com o tio em Amambai, no Mato Grosso do Sul. Ansioso por ser patrão, lá montou uma oficina mecânica. Mas deu tudo errado. Simplesmente, porque não havia movimento. Quebrou.

Agora, com uma mão na frente e outra atrás, decidiu retornar à Campo Mourão. Colocou toda a mudança num caminhão e deu adeus ao Mato Grosso do Sul. Ele chegou à cidade. Mas a mudança, não. Numa das descidas entre Engenheiro Beltrão e o distrito de Sertãozinho, o caminhão bateu de frente com outro. Nada sobrou. “Tudo o que juntamos tinha sido destruído”, disse. A bem da verdade, pra não dizer que tudo foi perdido, restou a geladeira. Mesmo amassada em todos os lados, ela ainda funcionava.

Lachinski então acabou morando sob o teto do sogro, Reinaldo Bortotti, de favor. Não havia dinheiro, móveis ou outra alternativa. Então, buscando um emprego, encontrava apenas bicos. E eles não eram satisfatórios economicamente. “Eu conhecia o dono de um mercado. Naquele dia fui até lá pedir uma cesta básica à minha família. Fui com muita vergonha. Afinal, estava no pior momento da minha vida. Estufei o peito e entrei. Pra minha surpresa, me negaram. Foi o pior dia que já enfrentei”, lembrou ele, que, de tão emocionado, chorou.

Mas a vida dá voltas. E as suas surpresas, seja por intervenções divinas ou não, costumeiramente, logo aparecem. E, em pouco tempo arrumou um emprego. Era um salário de miséria, como disse. Mas era alguma coisa. No emprego de torneiro, ficou um mês. Em seguida, alçou novos voos, agora, em uma loja em que permaneceu até março de 1980. Com a grana entrando, se levantou. E o seu nome, ganhou peso.

Então, ainda em 80 teve o “passe” comprado por uma algodoeira. Ganhava 12 salários. Sua missão, também como torneiro industrial, era manter o parque em funcionamento. E ali ficou por quase 15 anos. Em 1987, um novo acidente. Ao desembuchar um elevador da indústria, acabou caindo sobre uma transportadora de rosca. Como consequência, inúmeros hematomas, e 12 dias na cama, com os pés para cima.

“Ele é muito ativo. Muito arteiro. É difícil fazer ele ficar na cama. Neste acidente, se levantou antes das recomendações médicas e foi trabalhar. Para seguir as ordens dos médicos, só amarrando mesmo”, revelou a filha, Viviane. Lachinski explicou que em uma oficina, os acidentes não costumam a demorar, principalmente, à matéria prima ser quase toda em ferro. A inquietude de Lachinski é tão grande que os três dias de entrevista aconteceram enquanto ele trabalhava. Perguntas e respostas em meio ao barulho das máquinas. O sujeito simplesmente, não para.

Em 1994, já em outra mecânica da cidade, estava moldando uma peça em um torno. Era um dia de intenso frio. Mas foi pego pela rosca do equipamento. “Minha blusa enroscou na rosca, sendo torcida e puxada. Foi praticamente arrancada de mim”, disse. Ele poderia ter perdido o braço ou até, morrido. Mas quis o destino, mais uma vez, que as consequências fossem mais brandas. Teve a pele do braço arrancada, pescoço esfolado e hematomas diversos no tórax. Ficou um dia em casa. No outro, retornou ao trabalho.

Buscando melhorar financeiramente, em 2004 abriu o próprio negócio: JM Tornearia. Católico fervoroso, sempre acreditou. Tem uma fé como poucos. Tanto é que fundou o primeiro grupo de jovens católicos da cidade. Mas mesmo crendo numa força divina, os acidentes continuavam. De fato, Lachinski sempre deu muito trabalho aos anjos da guarda.

De botas e zorba

No dia 7 de setembro de 2014, no feriado de Independência, Lachinski abriu a empresa e foi trabalhar. Era um pedido urgente de um cliente. E novamente, acabou vítima do torno. A calça enroscou no equipamento e foi arrancada de seu corpo, com cinta e tudo. No desespero em se desvencilhar, a blusa e a camiseta também foram “capturadas” pela máquina. “Em segundos, eu estava de botas e zorba no meio da empresa. Nem mesmo o cliente acreditou no que via”, lembrou ele, rindo. Desta vez, teve apenas escoriações, principalmente, pelas roupas serem de má qualidade.

Por volta de 2014, ele estava em Curitiba na casa da filha. Ao sair do carro, num dia chuvoso, escorregou na varanda e caiu de frente. Bateu violentamente a cabeça no chão. Como resultado: traumatismo craniano. “Perdi o senso de direção. Estava atordoado. Depois fui levado ao hospital. Tudo certo”, disse. Apesar de estar recuperado, as marcas continuam num dos cantos da testa.

Um novo escorregão

Em 2021, Lachinski estava em sua casa, em Campo Mourão. Escorregou na calçada e caiu de costas. O tombo foi descomunal. Achatou 70% da quarta vértebra e 20% da quinta. E os acidentes não pararam. Ainda, no mesmo ano, em sua empresa, decidiu apanhar um ferro numa prateleira. Mas o improvável aconteceu. Todo o resto do material veio à baixo, empurrando sua perna direita. Com o solavanco, caiu, batendo o quadril. Além de muitas escoriações, teve que colocar uma prótese na cabeça do fêmur esquerdo. Fez uma cirurgia, e permaneceu quase um mês sem andar.

Era um dia comum em sua empresa naquele 2022. Na máquina de policorte, esmerilhava uma peça. Mas o disco do equipamento quebrou, sendo arremessado contra ele. Os pedaços voaram por todo lado. Alguns deles atravessaram a roupa, parando em seu peito e na barriga. Assustado, se ajoelhou. E quando viu, o polegar de uma das mãos estava pendurado. O disco havia cortado até o osso. “O médico colocou um pino, costurou e hoje está tudo bem”, afirmou.

Lachinski é um homem extremamente realizado. Coração enorme, com uma generosidade singular. Definitivamente, um homem de Deus. Nunca fumou e nem bebeu. Casado com Laíde, tem três filhos – duas meninas e um menino. Já são seis netos. E diante das mãos extremamente calejadas do trabalho, ele não para. Não há um só instante em que não esteja ativo na empresa. Atualmente, têm os netos ao seu lado. E juntos, labutam unidos. Piadista, sátiro, Lichinski também é pescador. Um dos seus lazeres preferidos. Antes de terminar a entrevista, para finalizar a trajetória dos acidentes, ele mostra um dos dedos e pergunta a este repórter: “Eu já falei sobre este corte que fiz ontem?”.