Figueiredo não abrirá hoje
As mesas não estão mais na calçada. Comidinhas de boteco não saíram da geladeira. A cerveja não será mais vendida. O bar está vazio. Vazio como o sentimento de todos aqueles que conheciam o famoso Maurildo Figueiredo, ou apenas, o Figueiredo. Ou somente “Figa”. Ele era o dono de um dos mais tradicionais bares de Campo Mourão, existente desde a década de 70. Morreu na estrada na tarde do último domingo. Caiu de moto. Não se levantou mais. Sim, o Bar do Figueiredo agora está fechado. A vida por trás daquele antigo balcão deixou de existir. Restaram as histórias e lembranças de um local sempre alegre, cuja alma, refletia a imagem do seu dono. O bar era o espelho de Figueiredo.
“Figa” era um cara extremamente bem resolvido. Pelo menos, até a esposa Josefina morrer há cerca de dois anos. Como dizem alguns amigos, ela era o DNA do marido. Era o braço direito e esquerdo. Foi a companhia de uma vida. Certa nos momentos alegres. Perfeita nos problemas do dia a dia. Figueiredo morreu aos 57 anos. Voltava de viagem com sua Harley Davidson. Desde a morte da mulher, aderiu a um grupo de motoqueiros – Bodes do Asfalto. Uma espécie de fuga da solidão. E ele adorava a estrada.
O bar não tinha luxo nem lixo. Era o equilíbrio perfeito entre as boas companhias e a cerveja trincando. Canela de pedreiro. Era um local sem frescura. Chão vermelho daqueles apenas com cera. Coisas empilhadas. Mesas de plástico na calçada. Uma mesa de sinuca. Boa conversa. O melhor torresmo da cidade. Boteco respeitado. Ali não se criavam playboys ou malacos. Era um bar pra gente normal. Democrático. Trabalhadores, médicos, empresários, advogados. Gente simples. Gente rica. Mas em comum: as cadeiras de plástico do “Figa”. Na sombra do final de tarde, muita conversa fiada. Piadas. Política. Economia. E como todo time tem um capitão, a liderança era do próprio Figueiredo.
Maestro da boa recepção, sabia lidar com cada um dos seus clientes. Aos mais chegados, gozação. Aos novatos, respeito. Aos intermediários, a boa prosa. Sem garçom, ele mesmo ensinava aos clientes como pedir a cerveja. Bastava uma batida do copo americano na garrafa. Em instantes lá vinha ele com a “mardita”. Criou esse código pra ninguém ficar com gritaria. E a turma o respeitava. Quem sempre o ajudou na cozinha foi a esposa. Ela vinha seguindo uma receita da família com o torresmo. Mas com a sua morte, vítima de câncer, ainda em 2018, Figueiredo já não era mais o mesmo. Sentiu a perda. Sofria calado, contam alguns amigos.
O bar começou em 78 com o pai, Nilton. Catarinense, ele chegou a Campo Mourão no final da década de 50. Cresceu e virou caminhoneiro. Transportava madeiras. Mas beirando os anos 80 decidiu abrir o “boteco”. “Figa” cresceu praticamente no interior no bar. Tanto é que virou sócio do pai entre os anos de 85 e 90. Depois disso o bar fechou. Mas em 97 Figueiredo veio com tudo. Não só o reabriu, como trouxe a esposa para ajudá-lo. Era a sua companheira de uma vida.
Maurildo deixou dois filhos, Marlon e Herlon. Mas eles não têm interesse em tocar o negócio. Decidiram fechar. Estão em outras atividades, o que aumentaria a correria. Marlon lembra de um pai tranquilo. Tinha seus momentos de fúria, como qualquer pessoa. Mas na maioria das vezes era um homem sereno. Com a morte de sua mãe, o pai ficou perdido, diz. Meio sem rumo. Mas comprou a moto e iniciou uma nova jornada. E isso vinha fazendo bem a ele. “Moto sempre foi uma paixão antiga dele”, disse o filho.
Sérgio Miguel Spilka, o “Paco”, frequentava o bar há 40 anos. Conta que chegava e batia no balcão. “Hoje vou tomar umas cascavel e não tenho dinheiro”. Figueiredo e ele tinham essa brincadeira. Era pra afugentar algum larápio. Então ele respondia com outro tapa no balcão e gritando: “Então vá em outro bar. Aqui só vendo à vista, em dinheiro. Ou vá pra casa”. Quem não os conhecia olhava de soslaio, de canto de olho, com medo. Pensavam que ia dar tiro. Mas depois eles se abraçavam e gargalhavam. Era uma piada. Dos velhos clientes do início do bar, Sérgio explica que restaram poucos. “Restou eu e mais uns seis. Os demais já estão no cemitério”, disse. “Paco” conta que “Figa” puxou o pai nas brincadeiras.
Sérgio era um amigo muito próximo. Diz que Figueiredo estava se conformando a fechar o bar. Era um misto de cansaço e tristeza. “A morte da mulher quebrou suas pernas”, disse. Como confidente, os dois trocavam ideias e davam conselhos, um ao outro. “Paco” conta que quando chegava tarde, “Figa” já ameaçava: “Tá tarde. Hora de ir embora ou ir pra zona. Só não vou com você porque sou casado”. “Eu só bebia coca com whisky. Então depois de umas cinco doses, pedia o chorinho. Ele dava. Mas sempre falava: aí foi meu lucro”, lembra o amigo.
Com a morte de Josefina, a mãe de Figueiredo voltou à cozinha. Olga, aos 73 anos, retomou a velha receita do torresmo. Antes de morrer, o filho já havia falado para amigos que não era justo fazer a mãe voltar a trabalhar. Talvez por esta razão estava pensando em fechar. Olga está bastante abalada. “Figa” foi o segundo filho a morrer. Antes dele ela já havia perdido um bebê. Mas isso não é um assunto que gostem de falar.
Amigo recente, o advogado Márcio Deitos conta que vinha tendo uma amizade com Figueiredo já, há quase dois anos. Em novembro os dois foram juntos ao litoral. O vínculo começou após a morte de Josefina. Desde então, sempre juntos, principalmente, quando o violão “chorava”. “Era uma pessoa do bem. Buscava a felicidade. Um amigo perfeito”, disse. Segundo ele, um dava conselho ao outro. Mas embora buscasse alegria, sentia que a tristeza ainda habitava seu interior. As viagens de moto passaram a ser uma espécie de “companhia” a sua alma. Afinal, isso vinha fazendo muito bem a ele, disse.
O bar não abrirá mais. O sorriso de Figueiredo ficará em seu interior. Pra eternidade. Lá o vazio continuará. Assim como os ecos da saudade. Uma saudade sem cura. Doída. Maldita. É que vai ano, vem ano, as pessoas não se acostumam com a morte. Mas no caso do “Figa”, ainda é mais difícil digerir. Principalmente, porque as perdas acidentais não avisam quando chegam. E ele foi cedo. Cedo demais.