A estrada perdida de ‘Vasca’
Eldair Pereira de Vasconcelos Filho está sozinho no mundo. Aos 41, ele assim decidiu. Os caminhos poderiam ser outros. E, as escolhas já foram feitas. Ele é somente mais um dependente químico, devorado pela força descomunal do crack e do álcool. E adotou as ruas de Campo Mourão como sua via crucis. Até pouco tempo, ainda mantinha um pouco de compaixão de si mesmo, principalmente, através do seu contrabaixo. Músico dos melhores, optou em trocar as notas musicais por papelotes. E doses de álcool. Muitas doses.
Conhecido como “Vasca”, o músico cresceu em meio a uma família normal, em Cianorte. Pelo menos, segundo ele, até os seus 18. Época em que o alcoolismo do pai, também de nome Eldair, aflorou. Antes disso, estudou e completou o segundo grau. Fez aulas de música. Mas aprendeu o fino do rock sozinho. Foi uma espécie de auto didata. Começou no violão clássico. Se aprimorou no baixo. Nunca mais parou.
Em Cianorte compôs músicas e formou uma banda, “Smoking Snakes”. Tudo caminhava bem, até conhecer quem não devia. Foi apresentado a fantasmas da noite. Conheceu a maconha. Se aproximou do álcool. Cheirou pó. Por fim, quando viu, já estava viciado no crack. “No começo o uso de drogas é por safadeza mesmo. Não há desculpas. Mas, após a regularidade do seu consumo, não somos mais donos de nós. Viramos dependentes. Uma doença quase incurável. Mesmo a força de vontade em parar não adianta. A força passa. A vontade fica”, explicou.
“Vasca” diz que a doença do pai deu a ele péssimos exemplos. Mas, mesmo assim, não se isenta da própria responsabilidade e, de certo modo, de todas as consequências, as quais vem passando. “Meu avô era alcoólatra. Depois veio meu pai. Por fim, faltava eu. Não deu outra. Estou aqui agora, envergonhado do que sou”, disse. Segundo ele, o pai morreu aos 52, em 2001, vítima de cirrose, hepatite, trombose e pancreatite, quatro doenças diretamente relacionadas com o uso em abundância do álcool.
O pai era um exímio vendedor de móveis. Já a mãe, Mercedes, uma excelente costureira e modelista. Hoje, aos 74 e aposentada, ela continua morando em Cianorte. “Vasca” é o filho do meio. “Quando eu nasci, minha mãe disse que tudo começou a dar errado na família. Parece uma sina”, exclamou. Já faz algum bom tempo que não vê a mãe. “Eu prefiro assim. Já a fiz chorar muito”.
As drogas surgiram na vida de Eldair ainda aos 20 anos. E, entre fugas da realidade e doses etílicas, sempre se virou com o trabalho. Já foi estoquista em uma empresa. Trabalhou como radialista. Mas à noite, o “tesão” era ganhar um extra com a música. Sempre foi assim. Foi jovem também quando conheceu a esposa, com quem juntou os trapos. Da relação tiveram um filho, hoje com 19 anos.
A companhia da esposa não durou muito. Ela não suportou a loucura por debaixo do tapete. Era muita droga. Numa das brigas, “Vasca” pediu uma chance. Prometeu uma internação. E assim o fez. Rumou até Maringá, mas no momento em aceitar ajuda, teve um surto psicótico. Então fugiu, permanecendo isolado e sem dar notícias à família por quase um mês. “Fiquei na rua. Na sarjeta. Pedia comida, água, dinheiro. E era com as esmolas que comprava a droga”, lembrou.
Resgatado pela família, a rotina das drogas continuou. E é claro: adeus companheira. De uma só vez, perdeu tudo o que tinha: a família. Agora, sozinho e sem compromissos, “Vasca” rumava ao final do túnel. Um túnel sem saídas de emergência. Escuro. Vazio. E cheio de demônios. Os seus próprios demônios.
Então, dose após dose, tragada a tragada, “Vasca” acabou no inferno. Um inferno particular onde portas até existem. Mas difíceis de serem abertas. Foram seis internações. Duas delas forçadas. Um sanatório. Nada adiantou. Com a situação pessoal em degradação, terminou refém dos próprios vícios. Na dura caminhada doentia, percorreu muitas cidades. Mas acabou parando em Campo Mourão.
Há dois anos, literalmente como a um trapo humano, “Vasca” não conseguiu mais emprego. Muito menos, um palco a se apresentar. A bem da verdade, nem instrumentos ele tem. Tudo se foi, com exceção das marquises, ruas e da solidão. Ele está ilhado em meio a uma população de quase 100 mil habitantes. E ele tem consciência disso. Sabe que trilhou uma estrada perdida. Mas agora não acha as placas de retorno.
Esta semana ele decidiu contar sua história a este jornalista. Era uma noite chuvosa. A roupa molhada já dava pistas da falta de teto. Faminto, pediu um prato de comida e um pouco d´água. Como não estender a mão? Então, sentado à mesa, contou a própria tragédia pessoal. Seu estado era tão caótico que, enquanto devorava o rango segurando um garfo, com a outra mão quase derrubava tudo à sua volta.
Apesar da química tóxica, corrente em suas veias, “Vasca” continua uma pessoa extremamente interessante. É inteligente, culto. E mais do que tudo, ainda tem consciência do que virá pela frente. “Estou me matando a cada dia. E as drogas estão definhando o meu caráter”, afirmou. Apesar do estado alucinado, ele não representa perigo. Ao contrário, se mostra um cavalheiro. E acima de tudo, faz autocríticas o tempo todo.
Alimentado e agora, também sem sede, demonstrou gratidão. Muita gratidão. Um abraço apertado foi a despedida. E antes de ir embora, pensou alto: “Espero que o meu relato sirva pra muitas pessoas não adentrarem ao inferno que me meti. Não é fácil admitir que você está na sarjeta, sozinho e doente. Carrego uma tonelada de culpa nas costas. Desapontei muita gente. A vida é muito mais que isso”.