A ligação que mudou a vida de Elsa, vítima das enchentes no RS

Talvez você não se lembre ao certo o que fez no dia 2 de maio deste ano. Possivelmente, acordou cedo, tomou um banho, passou o café para o desjejum, vestiu sua roupa e foi trabalhar. Ao meio-dia, saiu para o almoço e depois retornou ao trabalho para cumprir sua jornada diária. Voltou para casa, tomou um banho, deitou em uma cama minimamente confortável e dormiu. Pode-se dizer que essa foi a sua quinta-feira de 2 de maio de 2024. Afinal, você lembrava que 2 de maio era uma quinta-feira? Contudo, Elsa Regina de Lima Pereira se lembra.

A senhora de 61 anos já ia para o serviço sob chuvas intensas há, pelo menos, cinco dias. Moradora de Guaíba, ela acorda às 6 horas da manhã, pega o ônibus e atravessa a ponte sobre o rio que leva o mesmo nome da cidade onde vive para chegar à Sede Administrativa da Unimed Porto Alegre, onde trabalha desde 2008. Mas naquele dia 2, Elsa, que é auxiliar administrativo na auditoria de SADT (sigla para Serviço Auxiliar de Diagnóstico e Terapia), precisou voltar mais cedo para casa. O Rio Guaíba estava tomando conta do seu lar.

A história da gaúcha é uma das milhares de vítimas das enchentes causadas pelas fortes chuvas que assolaram a famílias do Rio Grande do Sul, mas que traz o verdadeiro sentido de resiliência, fé, esperança e, sobretudo, a união de forças de pessoas que cooperam pelo bem comum de todos.

Entre a agitação das memórias da tragédia e a luta em seguir adiante, durante a entrevista, Elsa não sabia, ao certo, o que dizer sobre si mesma. “Quem é a Elsa?”, perguntava retoricamente. Além da senhora de 61 anos, que trabalha há mais de 20 anos no Sistema Unimed – antes de entrar para a Unimed Porto Alegre, ela já trabalhava na Unimed Centro Sul, em Guaíba mesmo, desde 2003 –, Elsa contou que nasceu em Tapes (RS), que é mãe de um casal, Marcelo, de 43 anos, e Fernanda, de 37, e que tem duas netas adolescentes. O alcoolismo foi o pivô da separação de Elsa com o pai dos seus filhos, após 23 anos de casados. Segundo Elsa, eles ainda mantêm contato e ajudam o pai.

Tem uma irmã chamada Jaqueline. Perdeu o pai há pouco mais de cinco anos, logo em seguida o irmão. Na época das enchentes, cuidava de mais três idosos: a mãe, de 84 anos, e os “maninhos da mãe”, como ela se referia gentilmente a uma tia de 81 anos e a um tio de 79, que faleceu em meados de julho deste ano. Agora, na casa, são apenas ela, a mãe e a tia. “Eu tinha a responsabilidade de três idosos para cuidar e isso para mim ainda é muito pesado. É muita coisa, sabe? Então é bem difícil. E o dia que aconteceu a enchente, a minha maior preocupação era eles”, diz com a voz de um choro embargado.

Naquele dia 2, ao ser dispensada do serviço, chegou em casa e começou a levantar alguns utensílios sobre as mesas. “Eu e minha irmã levantamos geladeira, máquina [de lavar roupas], cama, colchão. Tiramos as roupas das partes de baixo dos roupeiros e arrumamos a malinha dos idosos para três dias, no máximo”. Saíram da casa no final do dia. Dividiram-se entre a casa da irmã e a casa do filho Marcelo, que eram em regiões mais altas da cidade e não foram atingidas. A casa da filha Fernanda, que mora na Barra da Ribeira, outro município gaúcho, também não foi atingida. “Achávamos que em três dias voltaríamos para casa, mesmo que a água tivesse feito estrago na altura de uma mesa, mas teríamos uma casa”, completa Elsa.

Segundo dados do Rio Grande do Sul, a última medição do rio Guaíba, no dia 2 de maio, foi às 18h15 e apontava que a água estava acima do limite de inundação de 3 metros, com exatos 3,37 metros. Em 3 de maio, o nível subiu para 4,77 metros. Em 5 de maio de 2024, a marca era de 5,35 metros, ou seja, 2,35 metros acima do nível da cota de inundação.

A casa atingida era metade alvenaria e a outra metade de madeira, e fica a um quarteirão das margens do rio. “Tem uma rua, um prédio e daí já é a minha casa”, explicou Elsa, na tentativa de mapear o local. Ela e a família moram ali desde 1970. Foi nessa casa que viu os filhos crescerem, próximo dos avós e brincando no quintal. “Era um lar, com bastante amor, em que eu chegava com qualquer problema e era acolhida pela minha família”, lembra.

O filho Marcelo voltou à casa dias depois para tentar salvar alguns utensílios. A água já batia no peito, segundo Elsa. A Defesa Civil o tirou de lá. Não tinha mais nada para salvar. “Tu não tens noção dessa situação de desespero”, lembra a vítima que ficou com a casa por 30 dias submersa nas águas do Guaíba. “A cidade era um campo de guerra. Era helicóptero, era polícia, cachorro perdido, pessoas correndo, mães gritando porque tinham perdido filhos na correnteza. Era desesperador”, complementa.

Elsa lembra os dias peregrinando entre a casa da irmã e do filho Marcelo. “Teve um dia que a mãe, a mais velhinha, me olhou e disse ‘eu não aguento mais carregar sacola’. Imagina três idosos dormindo na sala, sem uma casa, foi de cortar o coração, isso porque não estou me incluindo.” Nesse período, ela conta que a tia, de 81 anos, se tornou agressiva, teve crises epilépticas e infecção urinária. O tio, que faleceu recentemente, teve pneumonia. A mãe, desde então, está triste, em choque.

Quanto a Elsa, o sentimento perante toda essa situação é o de raiva. “É uma raiva de tu passar uma vida trabalhando dignamente para ter suas coisas, sendo honesta, criar os seus filhos e, de repente, não ter nada. Mas graças a Deus estamos todos vivos e sei que Ele tem um propósito para tudo isso, só não tenho a resposta para isso ainda”, desabafa.

Recomeço

Para reconstruir a vida e a casa, Elsa se agarra na fé e na esperança de um tempo melhor. “A gente que confia n’Ele sabe que Ele está ali. Eu não entendia tudo aquilo que estava acontecendo, mas sabia que Ele estava ali para segurar a minha mão. Então, passar dificuldade com Deus ao seu lado é outra coisa”, diz em tom de testemunho.

Além disso, ela conta com a ajuda voluntária de conhecidos e, principalmente, da Unimed Porto Alegre e do projeto Abrace uma Família, idealizado pelo Instituto Unimed-RS, pela Unimed Federação do Rio Grande do Sul em parceria com a Unimed Federação do Paraná.

O projeto é parte de um trabalho iniciado desde maio para ajudar as vítimas das enchentes, mais especificamente os colaboradores das Unimeds do Rio Grande do Sul, atuando em quatro linhas: 1) segurança e saúde; 2) apoio direto e informações; 3) assistência financeira e material; e 4) recuperação e reconstrução.

Entre os colaboradores das Unimeds gaúchas, 625 foram afetados diretamente. Desse montante, 58% (321) tiveram a perda total de móveis e eletros, 39% (284) perda parcial de móveis e eletros, e 3% (20) perda total da casa, móveis e eletros. Elsa é uma entre os 321 colaboradores.

“De início a Unimed Porto Alegre nos disponibilizou colchões, alguns itens básicos e um valor em dinheiro. Isso tudo já era um grande abraço”, explica Elsa. “Depois, disseram que dia 21 [de maio], entraria um valor no cartão referente à vaquinha entre as Unimeds. Quando eu abri, tinha mais de R$ 5 mil. Eu não acreditava. Até liguei para o RH para saber se aquele dinheiro era meu mesmo”, complementa.

Contudo, o que Elsa não esperava era ser contemplada pelo projeto Abrace uma Família. A tarde de quinta-feira, 4 de julho, já estava no fim e fazia muito frio em Guaíba, conforme lembra a moradora. “Eu recebi a ligação da Unimed Campo Mourão falando que eu tinha sido escolhida pelo projeto. Eu escutava, mas eu não acreditava”, afirma Elsa. “E eu falei de uma dor que eu tinha. Foi me oferecido vários itens de móveis, mas, naquele momento, móveis não adiantavam, porque eu não tinha onde colocar.”

A cooperativa mourãoense adotou a família de Elsa desde julho de 2024. Os R$ 15 mil doados foram utilizados para a compra de portas, janelas, canos, forro, pisos e outros materiais de construção para auxiliá-la nos reparos da casa atingida pela enchente. “Toda a parte de madeira da casa caiu, então estou aproveitando a parte de alvenaria para fechar e fazer os quartos quentinhos e seguros para nós. E esse dinheiro foi justamente para isso, e ainda tem dinheiro lá para usar com outros materiais durante a obra”, explica Elsa.

Para o presidente da Unimed Campo Mourão, Dr. Antonio Carlos Cardoso, o projeto Abrace uma Família vai ao encontro do 7º princípio do cooperativismo, que é o interesse pela comunidade. “A gente não hesitou em ajudar uma família nesse projeto, porque a Unimed Campo Mourão está comprometida com o cuidado com os seus beneficiários, mas, também, com toda a comunidade”, afirmou Cardoso.

“Além de corrigir um dano, uma perda material da família da Elsa, essa ajuda atua na melhor qualidade de vida e, principalmente, na saúde mental deles, pois com uma casa segura, o bem-estar é reestabelecido, dando condições de realizar outras atividades em segurança”, completou o presidente da Unimed Campo Mourão.

Até o momento, 14 Unimeds do Paraná aderiram ao projeto Abrace uma Família e já ajudaram 32 famílias na reconstrução de casas e na compra de móveis e eletros. Além disso, a campanha RS em Emergência, promovida pelo Instituto Unimed-RS, destinou, até junho de 2024, mantimentos, entre água, comida, roupas, cobertores, itens de higiene pessoal e remédios para as vítimas das enchentes.

Panorama geral das enchentes

As enchentes no Rio Grande do Sul são uma realidade de longa data para o povo gaúcho. Os anos de 1941, 1967 e 1984 estão no histórico desse tipo de desastre natural no Estado. Em 2024, de acordo com dados da Defesa Civil, disponibilizados em junho, as enchentes somavam quase 2,4 milhões de pessoas afetadas em 478 municípios do Estado.

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Por Assessoria Unimed – Lucas Ribeiro