A lua de mel de Gilcéia não existiu
Naquele 17 de novembro de 1983, Gilcéia e Humberto acordaram bastante cedo. Pegaram as malas e rumaram até a rodoferroviária de Curitiba. Era um dia feliz. Muito feliz: a tão esperada lua de mel. A plena felicidade e o sorriso estampado, os ajudava a esquecer as confusões do dia anterior, quando quase tudo, deu errado. Então, adentraram a um dos vagões. O destino era Paranaguá. Mas, minutos após o trem sair, já em São José dos Pinhais, um susto: parte dos vagões descarrilou. Sem se ferirem, observaram que o vagão havia ficado empinado. Desespero. Com a ajuda de outras pessoas, os dois conseguiram sair. Estavam vivos. E, agora, andando em meio a um brejo, viram suas roupas novas se transformarem em panos sujos. É, definitivamente, a lua de mel havia terminado. O “trem” descambou, literalmente.
Gilcéia Gonçalves Limas de Oliveira nasceu em 1963. Filha de um taxista e uma dona de casa, teve uma infância normal em Curitiba. Fiel a Deus, ainda adolescente, concluiu o ensino fundamental. E, já mocinha, começou a dar as saidinhas de casa. E foi numa dessas “baladas”, no Clube Abranches, ainda em 1982, quando conheceu o futuro marido, Humberto.
Na época, ela tinha 21. E gostava de dançar. Gil, como é chamada, era uma moça alegre, mas muito exigente. Naquela noite, o galanteador Humberto chegou até ela para pedir fogo. “Eu estava fumando. Prepotente, joguei a xepa no chão. Ele a pegou e começou a conversar”, lembrou ela. Mas acontece que a moça não dava atenção a prosa. Insistente, o pretendente seguiu, até que a chamou para dançar. “Falei: só uma”.
Depois de dançarem “agarradinhos”, os dois deixaram o salão. E foram conversar na escadaria do clube. Entre cantadas e promessas, Gilcéia trucou: “disse que jamais iria me casar cedo”. Embora não fosse um costume falar sobre casamento no primeiro encontro, muito possivelmente, já era uma espécie de premonição. Gil teria comentado porque sofria com a separação dos pais, anos antes. No entanto, mesmo que não quisesse se casar cedo, os planos foram por água abaixo. Deu tudo errado. Ela havia caído na lábia do sujeito. Era tarde demais a lamentações.
Os dois começaram a namorar semanas depois. Gil aprendeu a gostar de Humberto, mesmo ele sendo dois anos mais jovem. E, principalmente, por se tratar de um bom rapaz. E não demorou para que o noivado acontecesse. “No dia de apresentar as famílias em um jantar, aquele silêncio. Foi uma noite meio chata e, extremamente silenciosa. E então, noivamos”, lembrou ela.
No ano de 1983 os dois iniciaram a correria para marcar o casamento. Tudo era difícil. E a pressão, imensa. Principalmente, porque Gilcéia estava grávida. “Tinha que casar rápido. Meu pai queria me surrar. Era vergonhoso para um pai casar a filha grávida”, disse. O homem ficou tão bravo que não queria deixar a filha se casar de branco.
O casamento aconteceu na Igreja da Barreirinha, em 16 de novembro de 1983, com meia dúzia de gatos pingados, ou melhor, convidados. Nem mesmo o fotógrafo contratado apareceu. Assim como o tapete vermelho solicitado por Gil. Jamais foi entregue. Era um dia extremamente chuvoso. Chuva que Deus mandava. A moça chegou à igreja e encontrou o pai completamente alcoolizado. Ao vê-la, a questionou: “você veio de branco”? Com tanta chuva, o irmão de Gil teve que a tirar do carro, no colo.
Pai e filha adentraram à igreja juntos. E, em seguida, ela foi entregue a Humberto, no altar. O padre olhou aos convidados e pediu que se aproximassem. “Na verdade, acho que ficou com pena da gente, com pouquíssimas pessoas”, riu Gilcéia. Trocadas as alianças, o padre bateu o martelo. Agora, os dois estavam casados.
Após a cerimônia, o casal, mais os gatos pingados, seguiram até o Parque da Barreirinha. Agora, sem chuva, um jantar foi servido. Não havia música, baile, ou qualquer outra coisa. Com exceção do corte da gravata do noivo. Isso teve. E foi assim que Gil e Humberto conseguiram juntar uma pequena grana à lua de mel. Mas se esqueceram que tinham que pagar o rapaz da portaria. Uma espécie de segurança contratado para barrar possíveis penetras. O dinheiro ficou todo com ele.
Lisos e sem teto, foram passar a noite na casa da mãe de Gil. O casal dormiu no sótão, onde o irmão havia criado o próprio quarto. “Meu irmão chegou naquela madrugada e se esqueceu que nós estávamos ali. E tropeçou na gente”. É, não faltava mais nada. O jeito era dormir, esquecer dos últimos acontecimentos e, pela manhã, seguir para pegar o trem.
Com três meses de gestação, Gil acordou bem cedinho. Estava muito feliz. E colocou um vestido vermelho de linho, fino, que havia emprestado de uma amiga. E, uma hora depois, já estava sentada com Humberto dentro do trem. Tinha algo mais a dar errado? Tinha.
Após o descarrilamento, o casal meteu os pés num banhado. E rumaram, ainda sem acreditar, em busca de um ônibus de volta à casa da mãe. Bastante sujos, chegaram. Naquele momento, a família ainda tomava café. E os olharam adentrando à porta como se vissem fantasmas. “Ué. Vocês não foram para Paranaguá”?
Casal aguerrido
Após o casamento, os dois tiveram que se virar. No começo, foram morar com a mãe dela. Depois, alugaram um imóvel com duas peças. Tinham um fogão e uma cama. Além de uma vontade enorme de trabalhar e prosperar. Humberto era marceneiro. E Gil, ficava em casa, já que estava grávida.
Com o tempo, Gil começou a fazer cursos na área de alimentação. Era um tempo difícil, cujas oportunidades demoravam a aparecer. “Busquei em Deus força para todas as minhas dificuldades. Mais adiante, fiz uma corrente que se chama jejum das causas impossíveis. Pedia que as portas fechadas, se abrissem. E Deus ouviu meu pedido”.
Gil já estava no quinto curso voltado a gastronomia quando foi convidada a ministrar aulas no Liceu de Ofício, pela prefeitura de Curitiba. E por lá, permaneceu 12 anos. Com o tempo, aprendeu a ensinar, praticamente, circulando por todas as áreas da culinária. “Me capacitei de tal maneira que eu entendia de tudo. Meu sonho era entrar no Senac”.
Para isso acontecer, ela teve que voltar aos bancos escolares, já que possuía apenas até a oitava série. Fez o EJA, entrando as 10 da manhã, saindo as 10 da noite. Tempos depois, passou pela entrevista do processo seletivo do Senac. Já estava, inclusive, com data marcada ao teste prático. “Fiz a prova no Senac e passei com o Rocambole mais gostoso do mundo. Então, fui selecionada como uma nova funcionária. Fiquei quatro anos e meio ministrando cursos de gastronomia. Tive muito sucesso dentro do Senac”, contou.
Gil também trabalhou como consultora de uma pizzaria. Acabou contratada. E foi nesse período em que se submeteu a uma cirurgia de redução de estômago. Hoje, ela continua no ramo gastronômico, mas como free lancer. Atua em buffets recebendo diárias. A vida, definitivamente, nunca foi muito gentil com ela.
Humberto ainda trabalha como marceneiro em uma indústria de móveis em Curitiba. Ele entra as 7 da manhã e sai as 17h. Em seguida apanha o veículo da família e atua como Uber até as 21h. Mesmo com tantas jornadas de trabalho, dela e dele, a grana nunca foi suficiente à casa própria. Eles pagam aluguel até hoje.
Aos 60 anos, Gil continua ao lado de Humberto. São 39 anos de união. Do matrimônio nasceram três filhos: Tiago, 37, Giselle, 34, e Amanda, 25. “Tivemos muitos atritos conjugais. Éramos novos. Mas continuamos juntos, agora, contando nossa história”, disse ela.