Douglas tinha um desejo: ser enterrado em Campo Mourão

Ele sempre falou: “Seja onde for que eu morra, quero ser enterrado na minha cidade, Campo Mourão”. Seu desejo foi atendido. Aos 30, Douglas da Silva Martins morava em Caraguatatuba, litoral norte de São Paulo. Foi mais uma das tantas vítimas da Covid. Morreu jovem, sem concluir sonhos e desejos terrenos. Sua vida foi marcada por discriminações e preconceitos. Homossexual, deixou a cidade para viver um grande amor. Ao lado de José, deixaram o ódio e a incompreensão de amigos e familiares. Rumaram sem destino, direto à paixão.    

A história de Douglas nunca foi fácil. Nasceu, coincidentemente, em 7 de setembro de 1990, dia da Independência. Ele ainda não sabia, mas, adiante, também gritaria pela própria independência: sua homossexualidade. O caçula de quatro irmãos, veio de uma família de bons trabalhadores, honestos. Mas extremamente pobres. O pai, Nelci, era da construção civil. A mãe, Aurora, doméstica. “Até começar a ganhar o seu dinheiro, ele nunca usou roupas compradas. Tudo era ganhado. Da assistência social da cidade”, lembrou o companheiro, José.   

Sempre pensando em crescer, frequentou a escola. Era dedicado. Tempos depois, iniciou como garçom. Trabalhou por todos os buffets da cidade. E, de certa forma, se encantou com o “novo mundo”. Nas festas glamurosas, desejou ser não apenas mais um garçom. Queria ser o melhor. Também atuou como office boy, numa empresa de contabilidade. Foi daí o desejo em cursar administração. Com o dinheiro chegando, ele concluiu que o caminho a seguir era apenas esse.  

Mesmo contente com o trabalho, Douglas escondia uma angústia. Era a falta da mãe. Aos dez anos, numa sexta feira, antes do dia das mães, ele voltava da escola com uma cartinha. Mas jamais a entregou. Ela havia ido embora de casa. O menino ficou sem a genitora. E isso o incomodava. Ele jamais aceitou a ideia de tê-la perdido. Na sua ausência, foi cuidado pela irmã, Patrícia, e pelo pai. Sensibilizado, nunca a esqueceu.   

Em 2010, Douglas conheceu José Edson Nunes, 20 anos mais velho. Também no ramo de buffets, os dois se apaixonaram à primeira vista. José era casado e tinha três filhos. Mas, naquele momento, algo falou mais alto. Era hora de gritar a própria independência. E assumir, de uma vez por todas, a sua verdadeira opção sexual. “Foi ali que decidi assumir minha homossexualidade. Vi no Douglas um ser de luz especial. E, por causa de toda a discriminação que começamos a sofrer, optamos deixar a cidade”, revelou.

Douglas morava no Jardim Bandeirantes. Lá, populares o chamavam de o “gayzinho do Bandeirantes”. Mesmo assumindo sua opção sexual, de certa forma, se sentia perseguido. “Ele me disse que era uma espécie de opressão à sua escolha. Não se sentia bem com os  comentários. Por vezes chorou diante das discriminações que sofria”, disse José. Segundo ele, o próprio pai não o aceitava.  

Por sua vez, José era casado, com papel e tudo. Ao lado da esposa, tinha três filhos. Ele sempre foi homossexual. Mas escondia, principalmente, devido a uma sociedade extremamente machista. Ao comunicar a família sobre a decisão de viver com outro homem, foi discriminado. A notícia foi uma bomba. Mas a decisão já estava tomada. Com o tempo, os filhos absorveram a ideia. Hoje, além de aceitarem, são amigos do pai. 

Nova vida

Agora juntos, apenas com uma mala e a coragem, rumaram a Bahia. Tempos depois, ao litoral de São Paulo. No início, trabalhavam em restaurantes. Dias, semanas e meses se passaram, até que realizaram o sonho em empreender. Montaram uma empresa de salgados. E mais adiante, uma fábrica de pimentas em conservas. Douglas também iniciou o curso de Administração de Empresas. Era pra se formar esse ano. Mas a doença chegou antes. 

José conta que o companheiro jamais bebeu. Não fumava, muito menos utilizava drogas. Sempre foi contrário ao mal da alma. Preocupado com o plano espiritual, se embrenhou pela religião espírita. “Ele era muito especial. Via nele um ser de luz. Não tinha maldades. Era honesto. Preocupado com pessoas e animais”, disse.  

Sempre desejando reencontrar a mãe de Douglas, o casal iniciou buscas pela internet. E a localizaram. Ela morava em Ivaiporã. Feita a primeira ligação, o coração do rapaz disparou. “Ele gritava de alegria. Chorava e gritava. Nunca vou esquecer aquele dia”, lembra José. Dias depois, Douglas entrou num “busão”. O destino: o amor. Foi até Ivaiporã e nunca mais ficou sem notícias dela. 

No começo deste ano, numa das conversas, Aurora revelou ao filho estar doente. Médicos desconfiavam de um câncer no útero. Preocupado, Douglas voltou a Ivaiporã. Fez um empréstimo. A ideia era pagar a cirurgia particular. Mas, no vai e vem dos hospitais, ele foi contaminado pelo coronavírus. Quase ao mesmo tempo em que a Covid se agravava, a mãe foi hospitalizada. Iria fazer a sua cirurgia. Horas depois, em 10 de março, foi a vez do filho ser internado. 

Antes de ser intubado, Douglas trocou mensagens com José. Ele reafirmava seu amor por ele. “Pra mim, isso era uma conversa tola. Ele era jovem. Eu tinha certeza que ele sairia vivo. Mas me enganei”, disse. 

José internou mãe e filho, quase ao mesmo tempo. Aurora fez a cirurgia. Não era câncer. Deixou o hospital bem. Douglas lá permaneceu. Com complicações a cada dia, mais severas, não resistiu. E morreu no dia 16 de março, às 15h40. Não sobreviveu para ver a mãe bem. Após a morte, o corpo foi levado até Campo Mourão, como era o seu desejo. Numa cerimônia rápida, quase vazia, foi enterrado com a canção “Segura na mão de Deus e vá”, do Padre Zezinho.  

No dia do enterro, Douglas também conseguiu mais um de seus desejos: estar ao lado do pai. De acordo com José, desde sua saída de Campo Mourão, em 2010, o pai não falava com ele. Havia sido rejeitado por sua homossexualidade. “O pai dele chorou muito. Comprou um jazigo. Parecia um remorso, por ter rejeitado o próprio filho por ser gay. Douglas sempre quis estar ao lado dele. O fato de sermos gays não nos torna menores que ninguém. Amamos do mesmo jeito que as pessoas ditas, normais”, afirmou José. 

Mas agora é tarde para remorsos. Douglas se foi. Ficou a saudade. E a dor do companheiro. Além de uma sociedade que ainda insiste em não respeitar. Após o ritual, José retornou ao litoral, onde mora. Ele é amigo de Aurora, a quem pretende sempre ajudar, como promessa feita a Douglas.      

Em tempo: a reportagem ligou ao pai de Douglas. Mas em nenhuma delas, atendeu. Fica aqui o espaço aberto a possíveis posicionamentos sobre a matéria.