João (John) Francisco (Francis) Inglez (Hodder): o último pirata

Ela não usa tapa olho nem chapéu. Tampouco bandana e lenço na cabeça. Jóias em excesso, esqueça. Muito menos uma espada em riste. Também não mantém em sua casa nenhum baú com tesouro. Ao contrário, como uma brasileira, o jogo é duro. Até 2019 a vida fluía normalmente, pelo menos, até receber a notícia da descendência direta do último legítimo pirata do planeta, “Zulmiro”. Sim, Isaíra Inglez, moradora de Campo Mourão, é bisneta de John Francis Hodder, um lord irlandês que, após matar um oficial da marinha britânica, onde também atuava, desertou. Ao fugir, acabou se transformando num traficante de escravos e, por fim, quando viu, já era um pirata: “Zulmiro”, o último deles.

A notícia pegou não só ela, mas toda a família de surpresa. A descoberta aconteceu através do pesquisador curitibano Marcos Juliano Ofenbock. Buscando descobrir se a maior lenda urbana de Curitiba – a história do pirata “Zulmiro” -, era verdadeira, comprovou os laços entre ela e o pirata. Hoje, a aposentada e viúva Isaíra, 65, continua tranquila. Embora já estampe livros e documentários. Mantém uma vida normal, completamente diferente da correria e aventuras do bisavô, no século 19. Ela reside numa calma rua do Lar Paraná, em Campo Mourão, ao lado da filha, Alessandra e da mãe Estefânia, de 106 anos. Só que, mesmo em paz, ela aguarda ansiosa a possibilidade de pesquisadores localizarem o grande tesouro deixado na costa brasileira pelo próprio bisavô, na ilha da Trindade.

A lenda bastante conhecida por mais de um século em Curitiba, virou história. E bem real. Há tempos, muito se falou sobre um verdadeiro pirata ali enterrado. Também se especulou ao em torno de um mapa do tesouro, com baús contendo ouro e pedras preciosas. Após 18 anos estudando e pesquisando o teor de toda a prosa, Marcos Juliano Ofenbock decretou o fim do mistério.

O irlandês e marinheiro das forças britânicas, John Francis Hodder, não só existiu como se transformou no pirata “Zulmiro”, um saqueador de tesouros do Atlântico Sul. Por fim, terminou seus dias incógnito e foragido em Curitiba. Mas agora, com o nome João Francisco Inglez, cujo corpo foi ali enterrado em 1889. O contexto ficou ainda mais “saboroso” após a pesquisa identificar familiares do pirata vivendo nas terras vermelhas de Campo Mourão. É, a família cresceu.

Jornais, documentos britânicos, cartas e livros. Estas foram algumas fontes utilizadas nos estudos do pesquisador. Passo a passo, ele descobriu toda a vida do marinheiro Hodder. Um sujeito nascido em berço de ouro de uma família aristocrata em Cork, na Irlanda, muito possivelmente, em 1798. Com a mesma educação da realeza britânica, Eton College – estudou ali de 1811 a 1814 -, deixou o internato como um verdadeiro lord inglês. O caminho a seguir agora, a academia naval.

Atuando pela marinha britânica, era brilhante no que fazia. Sua ascensão era meteórica. Mas quis o destino, e sempre ele, que tivesse um sério desentendimento com outro oficial, nas Ilhas Bermudas, no Mar do Caribe. Bom a ele, ruim ao outro. Gravemente ferido, o colega de farda não resistiu e morreu. Aos 25 anos de idade, iniciava ali a transformação, em todos os sentidos, de Francis Hodder.

Com um pesado fardo nas costas ou, praticamente um carimbo de assassino na testa, acabou desertando das forças britânicas, tendo como incerto o seu paradeiro. Afinal de contas, Hodder podia ser um lord, mas nunca um burro. Sabia que, a partir daquele momento, uma corte marcial o esperava. No frigir dos ovos, enforcamento. Então, desapareceu. Ao mesmo tempo, também acabou rejeitado pela própria família. Ao saberem o que havia feito, buscaram apagar os elos. Não conseguiram por completo.

Sua fuga começou no porto da Flórida, nos Estados Unidos. E lá, adentrou a um navio negreiro como imediato. Naquela época o tráfico de escravos e a pirataria andavam de mãos dadas. Um roteiro perfeito para que sua personalidade tomasse outra forma. Mudou os trajes. Se antes utilizava a farda branca e engomada da marinha britânica, agora eram roupas sujas e coloridas. O cabelo e barbas bem aparadas de antes, eram desta vez grandes e encardidas. Trejeitos e moldes de um verdadeiro pirata. O último deles. Adentrou àquele navio negreiro como Francis Hodder. Quando saiu, era “Zulmiro”, o grego.

Agora diferente e, com aparência surreal, ganhou a confiança de toda a tripulação e, até, do capitão. Não demorou muito – cerca de oito meses-, proclamou sua própria independência. Fez dali um inferno e, mais adiante, um motim. Matou o capitão e muitos outros marinheiros que defendiam o dono do leme. E, em meio ao sangue de marinheiros, tomou o navio. Para decretar seu novo destino, hasteou a bandeira preta. Agora, era ele quem traficava escravos.

Vindo ao Atlântico Sul, fez uma amizade verdadeira – embora a liderança fosse sua -, com outros dois piratas: o espanhol Jose Sancho e o russo “Zarolho” – o apelido se devia a um ferimento de espada no rosto, enorme, que culminou na cegueira de um dos olhos. Juntos foram os responsáveis por uma série de roubos e saques. Ali, “Zulmiro” já não mais traficava escravos. O objetivo mesmo era a pirataria. Possivelmente o maior dos roubos tenha sido a um navio que levava ouro e pedras preciosas da catedral de Lima, no Peru.

Para guardar todos os saques, os três – “Zulmiro”, “Zarolho” e José Sancho -, criaram o próprio banco. Um “banco” na ilha da Trindade, 1,2 mil quilômetros da costa brasileira. Atracavam a embarcação e depositavam ouro e jóias roubadas em dois túneis escavados por eles próprios.

Os tempos de saques não duraram muito. Todos os três acabaram presos. A marinha espanhola afundou o navio prendendo José Sancho. Zarolho também preso, foi levado à Havana, em Cuba. Lá, toda a sua tripulação foi enforcada. Mas ele conseguiu fugir, parando na Índia. Lá, foi preso pela segunda vez, em 1850, entregando o mapa do tesouro às forças britânicas. Zulmiro foi o último a ser capturado. E por um navio inglês, cujo capitão, Henry Keppel, coincidentemente era seu amigo de academia naval.

Embora os oficiais ingleses acreditassem na prisão de um pirata grego, “Zulmiro”, quando Keppel desceu até o porão, percebeu que se tratava do amigo John Francis Hodder. Contada toda a história, o oficial facilitou a fuga do colega. “Para que ele não fosse morto, deixou que escapasse próximo a Baía de Paranaguá, no Brasil. E exigiu que ali ficasse para nunca mais ser encontrado”, disse o pesquisador.

Agora, livre e vivo, “Zulmiro” subiu a Serra do Mar em nove dias, se refugiando na mata ao norte da então Vila de Curitiba, que contava com menos de 4 mil habitantes. Era 1828, quando passou a viver no mato, onde é hoje a Universidade Livre do Meio Ambiente, passando a adotar o nome João Francisco Inglez. Utilizou um nome abrasileirado e ao mesmo tempo, o inglês de sua terra natal, embora com z.

Na época teria comprado um terreno e uma escrava, de nome Rita. Ainda existe a possibilidade de não ter a comprado, mas sim, a roubado. Ela se tornou esposa e mãe de seus quatro filhos. A identidade foi revelada apenas perto da morte, em 1889, por um comerciante de erva mate também inglês, que ficou seu amigo, Edward Young Stammers. A ele, “Zulmiro” revelou toda a história, entregando, inclusive, um mapa com a localização do tesouro na ilha da Trindade.

Como a pesquisa teve início

Expedição brasileira que visitou a ilha em 1910.

A história do pirata “Zulmiro” era a maior lenda urbana de Curitiba. O enredo contava que o sujeito havia se escondido por 40 anos ali e, consequentemente, guardado um tesouro em túneis sob o Bosque Gutierrez. “Comecei então a xeretar o conteúdo e a encontrar documentos e indícios de que a lenda era de fato, verdadeira”, disse o pesquisador Marcos Juliano Ofenbock.

“Zulmiro” teria chegado a capital paranaense em 1828, vivendo ali até 1889, quando morreu com 90 anos. Por último, morou no bairro do Pilarzinho, onde era conhecido como o “Velho Inglês”. Ofenbock encontrou a certidão de óbito, assim como a de casamento, em 4 de fevereiro de 1829, quando se casou na igreja com uma escrava, Rita Maria. Na época, forjou o próprio nome: João Francisco Inglez, com z, uma espécie de adjetivo pátrio.

A maior parte dos documentos pesquisados foram encontrados na Hemeroteca Digital, pertencente a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Lá, um banco de dados digitalizado oferece relatos de jornais brasileiros desde 1808. Foram mais de 200 periódicos transcritos do Reino Unido, Estados Unidos, Portugal, Oceania, além do Brasil. E outras dezenas de desenhos, fotos, mapas e documentos guardados com familiares.

Na Hemeroteca, Ofenbock descobriu cartas escritas e publicadas no Jornal do Brasil, em 1896, por um outro inglês: Edward Young Stammers. Ele alegava ter conhecido “Zulmiro” em Curitiba entre os anos de 1879 e 1880. Na época, teria 20 anos de idade e migrou à Curitiba para trabalhar em fazendas de erva mate. Numa das noitadas, decidiu visitar uma “casa da luz vermelha”, na saída da Estrada da Graciosa. Lá, se dizendo inglês, o dono do bordel informou ser conhecido de um outro inglês, João Francisco, o Velho Inglês.

Sabendo agora onde morava, foi até ele, e o encontrou. Nas cartas, lembrou que se tratava de um lord inglês, com vasto conhecimento sobre cultura e idiomas. Falava até latim. Mas, vendo o casebre onde morava, em meio ao mato, ficou com uma pulga atrás da orelha: pensava que aquele sujeito escondia algo.

O tempo passou e, com ele, a amizade se fortaleceu. Ficaram amigos. Certo dia, Edward o comunicou que voltaria à Inglaterra. Foi aí que “Zulmiro” o chamou a um canto e revelou toda a história. Contou quem era, o que o levou até ali e mais: o confidenciou sobre o tesouro enterrado na ilha da Trindade, no Espírito Santo. “Ele só pediu ao amigo que contasse a história somente depois que morresse. Edward o respeitou. E depois que soube da sua morte, iniciou os escritos ao Jornal do Brasil”, disse Ofenbock.

O estopim para o início de suas cartas ao Jornal do Brasil começou depois que leu uma reportagem na Gazeta de Notícias, em 1896, sobre expedições da marinha da Inglaterra na ilha da Trindade. O objetivo era resgatar um tesouro deixado ali por um pirata. Mas nada encontraram, principalmente, porque um deslizamento havia coberto os locais onde escavariam. “E ainda contavam apenas com pás”, lembrou Ofenbock.

Lendo a matéria, Edward relembrou o amigo e tudo o que havia relatado. “Ele pensou se tratar de uma lenda apenas. Mas quando viu que a coisa era séria, foi em busca do Velho Inglês, no Paraná”, disse Ofenbock. Como “Zulmiro” havia morrido, decidiu então organizar uma expedição até a ilha. Mas o governo brasileiro da época – Prudente de Moraes -, não acreditou na história. E quem acreditaria?

A partir daí, iniciou a narrativa, através de cartas ao Jornal do Brasil. Todas as cartas eram assinadas como J.F. – João Francisco, ou John Francis. Na última delas, afirmou estar com o roteiro do tesouro. E a bem da verdade, essa foi a deixa às más notícias. Uma tragédia anunciada. Dias após a publicação, ladrões invadiram sua casa. Nada encontrando, o mataram.

O pesquisador lembra que, 14 anos depois da morte de Edward, um sobrinho, mexendo nos seus pertences, encontrou o roteiro do tesouro. Certo pela descoberta, conseguiu montar uma expedição em 1910. Nada encontraram. “A ilha é super difícil de aportar. São cinco dias de barco pra chegar. É inóspita. É a ponta de um vulcão no oceano. Uma cordilheira vulcânica de dez quilômetros quadrados. Não existia nenhuma tecnologia na época”, lembrou. Por fim, a história do tesouro acabou sendo esquecida pela imprensa e por todos.

Mas, com espírito aventureiro, o ex economista e agora, destemido Ofenbock decidiu “fuçar” a história. Foi ao cemitério de Curitiba e fez um levantamento, descobrindo documentos de 24 de agosto de 1889. Lá constava a morte de João Francisco Inglez. Pronto. A busca não iria mais parar. Ele também encontrou a certidão de casamento com Rita Maria e, mais adiante, documentos constando o nome de seus quatro filhos paranaenses: Joaquim, José, Maria e Ana.

Todo o enredo, baseado em documentos, aliás, uma vasta documentação, se transformou no livro “A verdadeira ilha do tesouro”, lançado em 2019. Além de narrar toda a pesquisa, o livro também traz a descoberta de bisnetos e tataranetos do Velho Inglês, que moram em Campo Mourão.

Expedição, livro, documentários e tv à vista

A história por si é incrível. E, sabendo disso, Ofenbock já começou negociações com a Marinha brasileira para uma possível expedição à ilha. O objetivo é resgatar o tesouro. Para isso, ele já recebeu propostas de patrocinadores multinacionais. “Devemos realizar a expedição nos próximos anos. Vamos encontrar o tesouro”, acredita. A expedição será realizada através do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná, em parceria com a Marinha brasileira. Será uma escavação arqueológica destinada aos museus

O enredo também despertou o interesse em vários canais de tv fechada, como The History Channel, Net Flix e National Geographic. Por fim, suas novas descobertas selam a obra “O Tesouro Pirata da Ilha da Trindade”, com lançamento este mês. Nos próximos dias um documentário será exibido na BBC, de Londres.

Mourãoenses com sangue azul

Juvêncio, neto de John Francis Hodder, ao lado da família no início do século XX.

Aos 65, Isaíra Inglez é filha de Juvêncio que, por sua vez, era filho de Joaquim, um dos quatro filhos de John Francis Hodder, o Velho Inglês do Paraná, ou o pirata “Zulmiro”. Conta que desde menina cresceu ouvindo relatos da família sobre um parente foragido vindo da Inglaterra. “Eu achava que era meu avô. Porque eles nunca davam nomes aos bois. A história sempre foi proibida entre eles”, revelou.

Seu pai Juvêncio tinha 2,02 de altura e nasceu em 1911, em São João do Triunfo, também no Paraná. Mais tarde, já homenzinho acabou por morar em Concórdia, Santa Catarina. Lá conheceu a esposa, Estefânia. Sua jornada sempre foi voltada ao campo, trabalhando com serraria, boiadas e erva mate. Por fim, morou em Roncador, vindo a falecer por problemas do coração aos 56 anos, em 1967, mesmo ano que a viúva e os filhos vieram a Campo Mourão.

Na cidade do chão vermelho, a família trabalhou muito. Estavam sem o patriarca. Então, desde cedo, todos enfrentaram a labuta. Isaíra lembra ainda menina quando atuava na seleção de feijão em uma cerealista da cidade. “Escolhia grão a grão o melhor café”, disse. Juvêncio e Estefânia tiveram 10 filhos. Ela continua viva, com 106 anos. Em janeiro, fará 107.

Ela também se recorda dos mais antigos dizerem que a família tinha sangue azul. E sobre um tesouro escondido, vigiado por almas penadas. “Quando fazíamos alguma arte, lembro da minha avó ameaçando nos levar ao “Velho do Mato”. Hoje consigo encaixar todas as peças daquele quebra cabeça. O velho em questão era meu bisavô”, disse Isaíra.

Embora com tantas pistas sobre a verdadeira história da família Inglez, Isaíra só conseguiu terminar o quebra cabeça em 2019. Foi quando bateu à sua porta o pesquisador Marcos Juliano Ofenbock. Ele também buscava pistas dos descendentes de “Zulmiro”. Bingo! Todo o enredo bateu. Era o momento de celebrar as descobertas.

“Fiquei muito feliz em saber sobre a nossa verdadeira história. Não sabia que meu bisavô havia sido um pirata. Com saques a navios. Tesouros enterrados. Foi surpreendente”, revelou. Segundo ela, a avó contava as histórias às migalhas. Havia muito medo. Principalmente por saber que alguém da família havia matado homens e, consequentemente, ser um foragido. “Era um assunto proibido. Mas quando o pesquisador contou tudo, entendi o que eles passaram”, disse.

Isaíra se casou e teve apenas uma filha, Alessandra, hoje com 44 anos. A exemplo do pai, Isaíra também perdeu o marido cedo, aos 54 anos. Juntos, mantinham uma pequena metalúrgica em Campo Mourão. Mas um aneurisma deu fim a tudo. Atualmente, ela mora com a mãe a filha, numa casa modesta, bem diferente dos castelos que o bisavô residia, ainda na Irlanda.

Ela acredita que o bisavô deixou algum tesouro enterrado também em Curitiba. “Soubemos que algumas vezes pagou contas com torrões de ouro. E mais ainda: como é que ele sustentava a família, se não falava nem o português. Se procurar, vão achar alguma coisa”, disse. Isaíra e Alessandra foram convidadas a participar da expedição para encontrar o tesouro, que pode acontecer em 2027. “Será uma aventura fantástica”, disse.

O tesouro

De acordo com os relatos deixados por “Zulmiro”, são dois depósitos repletos de tesouros na ilha. Um na baía sudoeste, que teve um grande desmoronamento. E outro no interior da ilha, contendo barris de ouro, sacos de pedras preciosas e jóias. No roteiro ele ainda cita que o montante ali deixado estava avaliado em – valores atualizados de hoje -, oito milhões de libras. Ou R$5 bilhões, fora o valor artístico, com valor incalculável.

Num dos depósitos, da baía sudoeste estão guardados os candelabros de ouro da Catedral de Lima. Estátuas, relicários, crucifixos em ouro maciço, pedras encrustadas e cálices. “Esse tesouro pode ser uma das maiores descobertas do mundo. Que coloca o Paraná no centro do planeta. É incrível”, acredita Ofenbock.

Uma vez descoberto e retirado, o tesouro terá como destino – todo ele – museus do Brasil. “Faremos uma escavação arqueológica. Acompanhada por um rol de grandes profissionais. Tudo o que ali haver, passará a ser dos museus brasileiros”, explica o pesquisador.