Maria se reencontrou com o passado, depois de 42 anos
Em janeiro de 1980, Maria de Fátima de Souza, com apenas 19 anos, apanhou os três filhos pequenos e embarcou numa viagem com destino à esperança. Ela morava no interior de São Paulo e, desejando esquecer as angústias do casamento, pegou um ônibus até Campo Mourão, onde parte da família residia. Mas no caminho, algo mudou a sua vida. Pelo menos, até esta semana. Vendo a pequena Jaqueline, de seis meses, bastante doente em seus braços, doou a criança a uma mulher, ainda dentro do coletivo. “Eu tinha medo que ela viesse a morrer. Não tinha dinheiro. A doei para que sobrevivesse”, disse. Dias, semanas, meses, 42 anos se passaram. E ela jamais se esqueceu. Eram os resquícios de um coração dilacerado. Mas aquele janeiro, retornou no último sábado. Ela reencontrou a filha.
A entrega da filha aconteceu a uma mulher desconhecida, Ilena Trindade Prata. Ambas estavam viajando no mesmo ônibus, entre as cidades de Auriflama e Araçatuba, em São Paulo. De acordo com Maria, a passageira viu o estado da menina e a pediu para que cuidasse. Apresentava febre, diarréia e vômitos. Horas depois, as duas desembarcaram em Araçatuba. Jaqueline seguiu nos braços da futura mãe adotiva. Enquanto Maria, rumou ao Paraná, agora ao lado de apenas dois dos três filhos. “Eu doei meu bem mais precioso. Estava desesperada. Não queria que ela morresse”, explicou.
Em Campo Mourão, Maria continuou sua jornada. A vida seguiu pesada. Sem uma casa, morou de favor, primeiro com a mãe, depois com uma irmã e, por fim, com o pai. Trabalhou como bóia fria e sempre manteve um histórico de sacrifícios. Definitivamente, o destino nunca foi gentil a ela. Antes de fincar os pés nas terras vermelhas do Paraná, estudou somente até a quarta série. E se casou ainda adolescente, em Auriflama. Não teve interesse, muito menos, condições em estudar mais. Extremamente pobres, o casal tinha três filhos e com uma vida marcada por necessidades.
Maria nasceu em 1960, em Teófilo Otoni, nas Minas Gerais. Teve outros seis irmãos. O pai trabalhava numa serraria. Também sempre viveram modestamente. De acordo com ela, o seu casamento não foi um período bom. Foi um passado de angústias e muito sofrimento. Traições e violência doméstica eram constantes. Sem ver a luz no final do túnel, selou o fim da relação. E fugiu. Declarou a própria independência e vazou ao Paraná. Nunca mais viu o ex companheiro.
No seu “novo” mundo em Campo Mourão, Maria trabalhou e iniciou um relacionamento. Mesmo assim, a filha Jaqueline jamais foi esquecida. Todos os dias da sua vida, ela pensava em reencontrá-la. Era um tormento sem fim. Então, há cinco anos, decidiu por escolhas próprias, buscar o passado. Através das redes sociais, fez apelos para encontrar Jaqueline. “Hoje temos a tecnologia para reencontrar pessoas. Mas naquele tempo, não existia nada. Eu tinha esperança em localizá-la”, disse.
Há alguns anos, em Belo Horizonte, uma mulher leu os apelos. Com história semelhante, encontrou Maria. Após conversas decidiram fazer um exame de DNA. Os resultados foram incompatíveis. Mesmo casada com Rosivaldo há anos, homem trabalhador com quem escolheu terminar os dias, a busca continuou. “Sempre disse a ela não parar as buscas. Encontrar a filha era o grande sonho dela”, disse ele.
Mas há um mês, novas notícias surgiram. Agora, vindas de Brejo Alegre, interior de São Paulo. Lá, uma jovem, de 42 anos, de nome Angélica, soube da reportagem escrita pela jornalista Alessandra Nogueira, do jornal Folha da Região, de Araçatuba. Era a história de Maria, que procurava a filha. Sem demoras, a contactou. E logo, fizeram o DNA. O resultado atestou chances de 99,9% de Maria, ser a mãe de Angélica, ou melhor, de Jaqueline. As buscas haviam terminado. O passado, finalmente, havia retornado.
A verdade é que Jaqueline teve o nome mudado. Agora, é Angélica Prata Belorte. Uma moça ainda jovem, com quatro filhos e um olhar extremamente marcante. Uma zeladora de escola que, a exemplo da mãe biológica, também vive com dificuldades. Adotada naquele janeiro de 1980, foi criada com muito carinho. Mas engravidou bastante nova, ainda aos 15, e acabou se casando adolescente. “Soube aos sete anos que fui adotada. Cresci com isso na cabeça. Aos 13, fiquei revoltada, com raiva. Mas com o tempo entendi os motivos que levaram minha mãe biológica a fazer isso. A perdoei há muito tempo”, disse Angélica.
Cientes do teste confirmando serem mãe e filha, Angélica marcou visitar Maria no último sábado. Numa viagem de quase seis horas de carro, deixou Brejo Alegre e chegou a Campo Mourão às 17h e 40 minutos. A mãe estava ansiosa, nervosa. Se arrumou e ficou na varanda da pequena casa, a tarde toda. Afinal, não é todo dia que se encontra com o passado. E, principalmente, com uma filha, desaparecida há 42 anos.
Então, naquele fim de tarde frio, um carro preto surge na rua. Passa devagar pela casa número 644. “Eu acho que é ela”, disse Maria, completamente, ouriçada. Mas o carro segue. Lá na frente, faz a volta. E retorna. O coração da mãe dispara. Ela sai à rua e vê o carro estacionar. Sem esperar, caminha até o veículo. Uma moça sai do banco da frente e pergunta: “Aqui mora Maria? Trouxe uma encomenda pra ela”. Já com lágrimas a cair, Maria vê a filha abrir a porta de trás e sair.
Foram cinco minutos abraçadas. Nenhuma única palavra. Um abraço verdadeiro, forte, emocionante. As duas choraram sem parar. Mas não era choro de tristeza, não. Eram lágrimas guardadas por 42 anos. Eram lágrimas de felicidade. Era um sentimento mantido, guardado há anos. O abraço parecia ser interminável. E contagiou a todos.
“Agora estamos juntas. Quero resgatar o tempo que perdemos”, revelou Angélica. Ela estava ao lado de um dos filhos, o neto de Maria. Ainda no domingo, Maria embarcou no carro, agora, para Brejo Alegre, onde a filha reside. Deve permanecer alguns dias, pra conhecer a turminha que tanto procurou.
De acordo com informações, ainda em 1980, a menina, que foi registrada como Jaqueline, nascida em 25 de julho de 1979, passou a ser nominada como Angélica. No novo registro, sua data de nascimento passou a ser 9 de março de 1979. A mãe que adotou Angélica se chamava Ilena e, na época, trabalhava em um circo. Ela faleceu em 2017.
No Paraná, Maria se casou e teve outros sete filhos. Atualmente, ela está com 61 anos e não trabalha, principalmente, devido a problemas de saúde. O companheiro, Rosivaldo, está afastado do serviço, com dores na coluna. Apesar de morarem em casa própria, bastante modesta, vivem com dificuldades financeiras. Uma vez ao mês são ajudados com uma cesta básica, fornecida pelo município. No entanto, agora, a falta de grana não representa nada diante da nova descoberta. Há motivos de sobra para festejar a vida.