Marlene e Renato. O imbróglio envolvendo a casa 1891 do Fortunato Perdoncini
A casa número 1891, na avenida Vani Borges de Macedo, no Conjunto Fortunato Perdoncini, em Campo Mourão, coincidentemente, reúne duas histórias inquietantes. A última delas foi narrada há uma semana, na TRIBUNA. Sem ter para onde ir, ao lado dos cinco filhos menores, Renato Cordeiro a invadiu, ainda em 2019. Consciente do ato ilegal, na época, não teve outra escolha. “Não podia deixar meus filhos na rua”. Um ano depois, o imóvel acolheu mais seis pessoas: a companheira de Renato, Daniele, e cinco meninas, filhas dela. Agora, cinco anos à invasão, uma ordem de despejo, com ação pela Caixa Econômica Federal, foi emitida pela Justiça Federal.
A segunda narrativa teve início quatro anos antes da invasão. Em abril de 2015, a cuidadora de idosos, Marlene Parra dos Santos, se inscreveu no sorteio das casas junto a outras cinco mil pessoas. E foi contemplada em novembro do mesmo ano. Mês em que levou toda a documentação exigida. Em dezembro ela foi chamada para a vistoria do imóvel. E, em 22 de dezembro, convocada para assinar o contrato com a Caixa Econômica Federal. Tudo caminhava corretamente.
Na época, Marlene morava num imóvel locado e chegou a rescindir o contrato, principalmente, porque a promessa era adentrar ao imóvel em janeiro de 2016. Mas a ocupação foi adiada por algumas vezes pela prefeitura. O motivo, na época, era porque a administração queria a presença da então presidente Dilma Rousseff. O dia escolhido, finalmente, aconteceu em fevereiro de 2016, mais precisamente, no dia 3.
Uma solenidade aconteceu. Fotos, sorveteiros, pipoqueiros, imprensa, todos a postos. Mas o nome de Marlene não foi chamado. Não constava na lista. De acordo com a advogada de Marlene, Viviane Ribeiro, ele foi simplesmente retirado. “Não houve qualquer notificação para a rescisão do contrato. Não houve qualquer comunicação prévia da recusa das chaves. Não foi dado o direito de saber o motivo de tamanha discrepância”, afirmou.
Dias depois, Marlene descobriu que o município havia a desclassificado do Programa Minha Casa Minha Vida por meio da “prática de atos nulos, sem direito a ampla defesa”, explicou a advogada. A alegação do município é que faltavam documentos. No entanto, a exigência da prefeitura não se justificava. Estivessem faltando documentos, ela não receberia os boletos de cobrança do financiamento, em seu nome. “Eu guardo eles até hoje”, disse.
Marlene é uma mulher sofrida, de pouco estudo, pouca instrução. Durante toda a vida, trabalhou cuidando de idosos. Tem três filhos. Mas o trabalho desapareceu após apresentar um severo quadro depressivo. Coincidentemente, com início após perder o direito à casa.
Presa
Desesperada e sem um teto para abrigar Adriano, o filho de 10 anos na época, Marlene tomou uma medida drástica: adentrou à casa no dia 6 de fevereiro. “Peguei minhas coisas, meu filho, e entrei na casa. Ela era minha. Deus me deu”, disse. Não prestou. Segundo ela, em poucas horas, três servidores da prefeitura chegaram e exigiram sua saída. Como não obedeceu, chamaram a polícia. E acabou detida.
Primeiro foi levada de camburão até o Batalhão de Polícia Militar. Em seguida, conduzida à delegacia de Polícia Civil. Permaneceu nos corredores até a madrugada. Depois foi solta. “Me soltaram com a condição de tirar minhas coisas da casa. E foi o que eu tive que fazer. Nunca me senti tão humilhada. Por algumas vezes eu queria morrer”, disse.
Certa que estava sendo injustiçada e, até “perseguida” pela administração municipal da época, Marlene então adentrou com um processo para a nulidade de sua desclassificação no Fortunato Perdoncini. E conseguiu. No processo movido ainda em 2016, a defesa menciona perseguição a Marlene após ela ter concedido uma entrevista na imprensa local reclamando da então prefeita Regina Dubay. “Eu disse na época que não concordava com os adiamentos para a entrega das casas. Eu precisava entrar no meu imóvel e eles ficavam adiando o dia”, lembra Marlene. Segundo ela, todo o sofrimento vivido até hoje é reflexo simples e puro daquela entrevista.
Hoje, Marlene continua morando de aluguel, no Jardim Bandeirantes, numa casa aos fundos. São R$450 mensais. Sem trabalho, quem sustenta a casa é o filho Adriano, de 17 anos. Ele faz diárias como garçom em uma churrascaria, ganhando R$60 por dia. “Quem nos sustenta é meu filho”, disse Marlene. Ela chorou. A grana mal dá ao aluguel. Para comer sempre falta alguma coisa. Os dois também contam com a ajuda da assistência social do município, vizinhos e familiares.
“Estamos esperando a Caixa recuperar a casa para retomar o contrato de Marlene. Se a família não estivesse lá, certamente ela já estaria morando no imóvel”, afirmou Viviane, a advogada de Marlene. “Eu só serei feliz quando puder entrar na casa que eu ganhei”, revela Marlene. Para isso acontecer, a família de Renato terá que ser despejada. Ele tem menos de 25 dias para sair.
O drama de Renato e Daniele
Em 2018, após fracassar no casamento, Renato acabou só, com os cinco filhos pequenos. Por motivos pessoais, a esposa voltou a morar com a mãe, em Manoel Ribas. Juntos, residiam num imóvel precário em Campo Mourão. Para piorar a situação, mais adiante ele perdeu o emprego. Agora, sem grana, acabou na rua. E, desesperado, não teve outra maneira a não ser invadir uma residência abandonada, no Conjunto Fortunato Perdoncini. Renato sempre buscou agir pelas vias corretas. Mas, sentindo a possibilidade de submeter os cinco meninos às ruas, fez o que achou prudente naquele momento.
Desejando o bem maior às crianças e, acima de tudo, com uma esperança infinita, acabou encontrando Daniela, ainda em 2020. Com história de vida bastante semelhante à sua e, também divorciada, levou ao imóvel outras cinco crianças, filhas dela. Com um amor indiscutível, o casal passou a ser uma única família. Dois pais, 10 filhos. E tudo caminhava bem. Pelo menos, até a última semana, quando uma ordem de despejo emitida pela Justiça Federal bateu à porta da pequena casa. “Perdemos nosso chão. Se isso acontecer mesmo, se tiver que deixar a casa, não teremos pra onde ir”, desabafou Renato.
Conta ele que está no imóvel já, há quase cinco anos. E, desde então, promoveu diversas melhorias no local. Fez a pintura. Muros. Jardim. “Preciso que a justiça deixe nossa família aqui. Queremos legalizar a situação. Pagaremos o que precisar”, explicou. Renato sempre soube que invadir não era o correto. Na verdade, trata-se de uma ilegalidade. E ele está ciente disso. No entanto, argumenta que não poderia deixar os filhos à mercê das ruas. Então, invadiu. “Fiz o papel de um pai”, afirmou.
Renato possui cinco meninos, todos ainda menores. Daniele cinco meninas, também pequenas. Ele trabalha numa empresa de reciclagens e ganha R$100 por dia. Já a companheira fica em casa, cuidando da turminha. Além da pouca renda do marido, outros R$1500 vem do governo federal, através do Bolsa Família. Ontem, a comida já estava no fim. E, quando a situação aperta, amigos do casal prestam socorro. Como legítimos brasileiros, a cada dia, um leão a enfrentar.
Defesas
Um servidor municipal daquela época, em entrevista à TRIBUNA, revelou que houve divergências na documentação de Marlene. Principalmente, em relação ao nome do seu ex marido. Ele nega qualquer tipo de perseguição. Ele também esclarece que, se houvesse algum tipo de perseguição, a filha de Marlene não teria ganho uma das casas. “Fizemos tudo legalmente. Se algo não fosse legal, já estaríamos presos”, disse.
Regina Dubay, então prefeita na época dos fatos, não se recorda de Marlene. “Não sei quem é esta senhora. Da minha parte, quanto da prefeitura da época, nunca houve qualquer tipo de intenção de perseguição. Dai a Cesar o que é de Cesar. Se a justiça acha que a casa é dela, que seja dela. Se eu tivesse alguma coisa contra ela, não teria buscado habitação para a população como ela, morar”.
Márcia Calderan, secretária Municipal da Ação Social da atual administração disse que o município está analisando a situação da família que invadiu a casa. “Temos uma equipe do Cras acompanhando a família”.
Nota oficial da Caixa Econômica Federal
A CAIXA informa que o Residencial Fortunato Perdoncini, localizado em Campo Mourão (PR), pertence ao Programa Minha Casa Minha Vida – Faixa 1, produzido com recursos do Fundo de Arrendamento Residencial – FAR, composto por 824 UH e entregue aos beneficiários em 2017.
Em relação à unidade, localizada na Avenida Vani Borges de Macedo, nº 1891, quadra 10, lote 15, o banco esclarece que foi constatada a desocupação pela beneficiária original por descumprimento das exigências legais do contrato celebrado.
Posteriormente, a unidade foi ocupada de forma irregular por terceiro não beneficiário do Programa. A CAIXA atua como Agente Financeiro do Programa seguindo as regras deste, não tendo esta empresa autonomia para destinação diversa ao previsto em norma.
Nesse sentido, caso seja constatada alguma irregularidade, o contrato original é rescindido e a unidade habitacional deve ser destinada a uma outra família selecionada pelo Ente Público, Prefeitura ou Governo Estadual, conforme Portaria do Ministério do Desenvolvimento Regional nº 2.081/2020, de 30/07/2020. As situações que fogem ao previsto na regulamentação devem ser verificadas junto ao gestor do programa.
Indícios de ilegalidade
A TRIBUNA também ouviu outros servidores da época da entrega das casas. Um deles revelou que no Fortunato Perdoncini, o caso de Marlene e Renato não são os únicos. “Lá, hoje, virou um verdadeiro comércio de casas. Uma investigação a fundo seria o mais próximo a se fazer justiça social”, afirmou.