O conhecimento de Cláudio não tem limites
Às sete horas da manhã Cláudio coloca a sua calça jeans, camisa social manga comprida e o surrado sapato preto bico fino, mas bem polido. Após fazer a higiene matinal, apanha o carrinho e sai pelas ruas de Campo Mourão. A missão: apanhar materiais recicláveis destinados à venda. A rotina compreende a semana toda. Não há tempo para pensar ou descansar. Ou arruma algo para vender ou falta grana. Matemática simples à sobrevivência. Mas, além do seu modo elegante de se vestir, há algo diferente em sua personalidade. Cláudio é um livro ambulante. Ou melhor, uma biblioteca inteira.
Aos 64 anos e, apenas com a quarta série do fundamental, Cláudio aprendeu a devorar conhecimento. Na prática, uma fome insaciável pela leitura. Sabe de cabeça todas as datas de nascimento e de morte, de todos os ex-presidentes do Brasil. Memorizou frases, contextos históricos e aspectos de cada período da política brasileira. O aprendizado foi tão contundente que, para fazer a entrevista, este repórter teve que interromper, por várias vezes, as aulas de seu vasto conhecimento.
“Em 1983 foi o último governo militar, João Figueiredo. Em 1900 nasceu Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, que governou o Brasil de 64 a 67. Aí você aumenta um, fica 1901, ano que nasceu Cecília Meireles, poetisa e escritora. E que morreu em 1964. Aí você aumenta 10. Fica 1911, quando nasceu Mário Lago e Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos. Em 1902 nasceu Carlos Drummond de Andrade, que morreu em 1987”, emendou. Ele performou por mais alguns longos minutos.
Cláudio Gonzales nasceu em 4 de agosto de 1960, em Astorga – onde nasceu também os sertanejos Chitãozinho e Xororó, lembrou ele. É o mais velho de cinco irmãos. Veio de uma família bastante simples, cujos pais eram lavradores. “Eu ainda era pequeno quando meus pais se mudaram para Mamborê. Lá plantavam arroz e feijão. Com a separação deles, aos 10 anos, vim embora para Campo Mourão com minha mãe. Desde então nunca mais saí daqui”, explicou.
Na cidade parou os estudos ainda cedo. Mas o suficiente para aprender a ler e escrever. Em seguida, peitou o mercado de trabalho. Virou mecânico e pintor automotivo. Atuou na antiga Cimauto de 76 a 78. E, mais adiante, até 2011, em quase todas as outras oficinas. Trabalhou, deu duro, mas cansado, decidiu parar. Então, desde 2012 se transformou em um coletor de recicláveis. E dos bons. “Eu sempre gostei de me vestir bem. Estar apresentável. Os mendigos da cidade dão risada de mim. Falam que eu sou rico por me vestir desse jeito”, gargalhou ele.
Confira um trecho da entrevista com Claudio:
E então começou a explanar sobre uma pedagoga de nome Helen Keller. “Você como jornalista conhece ela né?”, indagou – este repórter nunca ouviu falar dela. “Ela era demais. Era surda e muda e fez o que fez…”. Detentor de muitas informações, Cláudio fala de políticos, atrizes, atores, pintores, escritores e, quando menos se espera, começa a explicar as diferenças de turbinas de aviões brasileiros dos estrangeiros. Fala sobre países detentores de bombas atômicas, chegando até as raízes da Companhia Vale do Rio Doce. E lá vem o Charles Chaplin. Nova interrupção do repórter.
Em meio as pausas conseguidas na entrevista, Cláudio revelou que a sede pelo conhecimento começou em 1983. Ele escutava a rádio quando o locutor iniciou um grande relato sobre um conflito militar. “Naquele momento eu achei muito bonito como a informação foi passada. E pensei comigo: também quero falar assim”.

No dia seguinte Cláudio procurou a Casa da Cultura e lá, iniciou as suas pesquisas. Começou investigando todos os presidentes do país. Com uma caneta e um caderno foi anotando os dados mais importantes de cada um. Decorou. E nunca mais se esqueceu. De nada. Nem das vírgulas. Todas as anotações continuam guardadas até hoje em sua casa, numa prateleira da sala que começou a invadir todo o chão. São centenas de livros e revistas, a maioria encontrados no lixo, em meio aos recicláveis que coleta. De uma forma prática, mais informação sendo acolhida na cabeça.
“Eu tenho televisão. Mas é difícil ligar. Quando chega a noite, pego os livros e revistas que encontro e leio tudo. O meu lazer é ler. Anotar as informações e as repassar aos amigos”, revelou. Ele mal acaba de explicar e já emenda uma frase do pintor Leonardo da Vinci. E, quase ao mesmo tempo, outra do ativista indiano Mahatma Gandhi.
Cláudio nunca se casou. Segundo ele, porque jamais achou a sua cara metade. Além disso, também segundo ele, a companheira não aceitaria se mudar para uma casa prestes a cair. O imóvel em que ocupa, apesar de ser da sua família, está um caco. A bem da verdade, sem condições de abrigar um ser humano. Trata-se de uma residência em madeira construída em 1972, hoje dominada pelos cupins. O teto está comprometido. O piso já com buracos. E as paredes “reféns” dos insetos.
No momento em que apresentava sua casa, Cláudio não aguentou. E chorou. “Eu não sou vagabundo. Eu só não tenho condições de arrumá-la. Quando chove molha tudo e, vez em sempre, tenho que lutar contra ratos que aparecem”, explicou ele. Cláudio é evangélico. E acredita muito em Deus. Ele sempre viveu sozinho no imóvel.

Sem aposentadoria, Cláudio não possui filhos. Quem o ajuda é uma das irmãs. Ela o alimenta e ainda lava as suas roupas. “Ganho quando muito R$ 240 por mês com a venda dos recicláveis. Além disso, ganhou mais R$ 600 do governo. É isso”, disse. E mesmo com pouco, Cláudio insiste no sorriso. É que, como um legítimo brasileiro, tem esperanças em dias melhores.
E a sua esperança é poder participar de um quadro da televisão chamado “Show do Milhão” ou “Quem quer ser um Milionário”. Programas que premiam quem tem mais conhecimento, acertando as perguntas. “Minha sobrinha já me inscreveu. Mas até agora ninguém me chamou. Tudo o que eu queria na vida era poder participar. Certamente, com o dinheiro eu iria arrumar a minha casa”.
E antes de terminar a entrevista Cláudio pergunta se o repórter sabe o nome de Dom Pedro I – por óbvio que não. E lá vem ele: “O nome dele era Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon”. São 18 nomes falados ao pé da letra, sem pestanejar, sem nenhum auxílio de revistas, livros ou Google. Em tempo: Cláudio vai voltar aos estudos.