Um anjo chamado Abigail
Anjos existem? Se não, como explicar Abigail? Cozinheira há 17 anos na Casa de Apoio aos Doentes de Câncer, em Campo Mourão, ela não mediu esforços em abrigar pai e filha, na própria residência. Até fevereiro, os dois pernoitavam na entidade. Mas uma tempestade interrompeu a acolhida. Com o lar destelhado e, agora, impraticável a recebê-los, não tinham mais a quem recorrer. Mas ainda existia Abigail. Generosa, abriu sua casa e os recebeu como filhos. Foi a salvação a Abrelino, morador de Guaíra. Vítima de um câncer, ele faz tratamento na cidade. E, sem condições financeiras, não fosse um anjo atravessar seu destino, talvez não estivesse vivo a narrar a própria história.
O drama de Abrelino Doraci Dizengrini, 75, começou em 2007. Morando em Guaíra foi diagnosticado com câncer na laringe. Fez tratamento em Cascavel. Foram nove sessões de quimioterapia e outras 36 de rádio. A princípio, se recuperou. Mas não demorou para as sequelas surgirem: osteomielite. A agressividade das sessões comprometeu os ossos da mandíbula, que terminaram por infeccionar. Nem antibióticos funcionavam. “Começaram a surgir feridas na garganta e na boca. Ele parou de comer e, consequentemente, de falar”, disse Raquel, a filha que o acompanha.
Preocupada, o levou novamente a Cascavel. Lá, os médicos recomendaram um tratamento conhecido como Oxigenação na Câmara Hiperbárica. Seria a única, senão, a última alternativa. O Sistema Único de Saúde (SUS) até banca o problema. Mas a fila no hospital de Foz do Iguaçú era imensa. Correndo contra o tempo, descobriram uma clínica particular em Campo Mourão. Mas como bancar? “Tivemos que entrar com um pedido junto ao Ministério Público. E ganhamos as sessões do governo. Foi por esta razão que estamos em Campo Mourão”, explicou Raquel.
A chegada dos dois aconteceu em 10 de fevereiro deste ano. Na cidade, descobriram a existência da Casa do Câncer – órgão sem fins lucrativos, cujo único objetivo é dar condições às pessoas sem grana, em permanecer em Campo Mourão, sem maiores custos durante o tratamento. Instalados, ficaram ali até 24 de fevereiro. Recebiam cama, alimentação e muito carinho. Até surgir um temporal que destruiu a entidade. “Naquele dia meu pai estava com minha outra irmã num dos quartos. Parece que Deus colocou sua mão sobre ele. Seu quarto foi o único a não ser destruído”, lembrou Raquel.
No mesmo dia, a ambulância de Guaíra o levou de volta. Era hora de visitar a esposa. Foi então que a filha recebeu um comunicado. As notícias não eram boas. A Casa não poderia mais recebê-los. “Aquele telefonema tirou meu chão. Chorei muito. Não estava vendo saídas ao meu pai”, disse Raquel.
Mas acontece que os anjos demoram a ser revelados. E, ela havia se esquecido da cozinheira, a moça do coração gigante. Preocupada com Abrelino, Abigail ligou horas depois e os convidou para ficarem na casa dela. “Chorei muito de novo. Mas agora, de alegria. Ela é um verdadeiro anjo. Nos acomodou e hoje, nos sentimos como se estivéssemos na nossa casa. É difícil conhecer uma pessoa como ela. É simplesmente a pessoa que deu expectativa de vida ao meu pai”, disse.
Então, num mundo onde humanos pensam mais em ter, a ser, Abigail escancarou as portas da casa. Da própria casa. Lá, num dos três quartos do imóvel alugado, um cantinho aguardava pai e filha. São duas camas. Um guarda roupas. E um sopro de esperança. Tudo caminha bem. “Meu pai não falava devido as feridas. Mas agora elas diminuíram e ele já conversa”, relata Raquel. Na prosa rápida com este repórter, Abrelino se emocionou ao falar sobre a amiga. “Ela é o meu anjo da guarda”, disse.
Abigail vê nos dois, dois filhos. Faz a comida, dá carinho, além de emprestar um colo quentinho, pronto a aquecer o coração, sempre. E ela não recebe nada por isso. Ao contrário. É tudo pelo sentimento em ajudar. A bem da verdade, ela é presenteada com uma cesta básica pela instituição onde trabalha, uma vez ao mês. E só.
Aos 61 anos, Abigail Barbosa Fonseca nasceu em Belo Horizonte. Veio ainda recém nascida ao Paraná com os pais. Desejavam dias melhores. Oportunidades. Se instalaram em Campo Mourão e iniciaram a jornada na lavoura. Atuaram por muitos anos nas colheitas de café e algodão. Tiveram 11 filhos. Quatro já morreram.
Em sua vida, Abigail sempre buscou praticar o bem. Ela acredita em Deus. Mas nunca teve a chance em estudar. Trabalhou desde menina, também na roça. Aos 18 buscou na cidade, o seu alento. Trabalhou como doméstica. Depois em mercado. Por último, há 17 anos, acabou incorporada aos quadros da Casa do Câncer. Entrou e nunca mais saiu. É a cozinheira da entidade. E, sobre as panelas, despeja o sabor de esperança a cada uma de suas marmitas. A cada um de seus amigos vitimados pela doença.
“Cada um que ali se abriga passa a ser meu amigo. Sinto a sua dor. Enfrento o mesmo desespero. Buscamos a mesma esperança. É uma guerra sem fim”, diz Abigail. Por muitas e muitas vezes, viu os abrigados se despedirem para voltarem as suas casas nos finais de semana. Mas, as promessas que, na segunda retornariam, não foram cumpridas. A morte chegou antes. “É muito triste compartilhar isso”, revelou. Abigail chorou.
Casada há 41 anos com Moacir, teve três filhos. Todos estão bem. Foram educados com os mesmos princípios do casal. Mas o companheiro, há anos, vem travando uma luta desleal. Tem um problema crônico no coração. E, por isso, passa o dia na cama. Então, além de trabalhar, Abigail ainda cuida da casa, do marido e de Raquel e Abrelino. E isso, segundo ela, é tão somente um prazer. Não é obrigação. Muito longe disso.
Não é a primeira vez que Abigail leva abrigados até sua casa. Anos antes, quando faltava até alimentos na entidade, recebeu outra família. Foi uma época em que permaneceu dez meses sem salário. E, mesmo assim, seu coração teve compaixão em repartir o quase nada que sobrava. Ela conta que ganha um salário de R$1,5 mil. A renda é somada com outros R$1,2 mil da aposentadoria de Moacir. Do total dos R$2,7 mil, R$1 mil fica apenas no aluguel. A renda torna-se pouca quando a farmácia “toma” quase todo o restante. Isso sem falar no gás, luz, água e mercado. E mais recentemente o pior de todos os custos: a inflação.
É difícil descrever Abigail. Mas ela é real. E está bem aqui, ao lado. Mantém um coração enorme, mesmo diante das dificuldades. Ela fala baixinho. Tímida. E fez questão em contar a própria história, numa calma absurda. Mais do que ninguém, ela ainda acredita num mundo melhor, onde humanos sejam humanos. E, possivelmente, este seja o seu único erro.