Gastança, a praga moderna que atrasa o Brasil
No século XIX, o pesquisador francês August Saint-Hilaire (1779-1853) ficou espantado com a ação devastadora das formigas cortadeiras no Brasil, atingindo inclusive árvores frondosas. E aí foi cunhada uma frase que se tornou famosa: “Se o Brasil não acabar com a saúva, a saúva acaba com o Brasil”. Já estamos no século XXI e nem o Brasil acabou com a saúva nem a saúva acabou com o país. A profecia não se cumpriu. No entanto, a frase permanece viva e muito utilizada, por vezes como analogia à praga da gastança dos governos das últimas décadas.
Os danos causados pela saúva são significativos e cientificamente comprovados. Muitos dos estudiosos chegaram a quantificar os danos causados por um único formigueiro, como, por exemplo, a redução em três toneladas por hectare no resultado do plantio de cana-de-açúcar. Pois os maus governantes em pouco mais de duas décadas já causaram maiores danos e prejuízos ao país e à maioria da população brasileira do que as saúvas em séculos.
Esses prejuízos podem ser facilmente enumerados porque as ações deletérias trazem as impressões digitais desses governantes reprovados em competência administrativa e adeptos da gastança. Um deles diz respeito ao gigantismo da máquina pública, inchada não para cumprir sua função de suprir os serviços essenciais à população, mas para acolher os amigos de quem esteve ou está no poder, de seus aliados – muitos reprovados pela população nas urnas eleitorais –, e correligionários, apadrinhados com cargos em novos ministérios, secretarias, diretorias e conselhos das estatais, muitos deles recebendo salários superiores aos vencimentos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), teto máximo fixado pela Constituição.
O Legislativo também tem sua parcela de responsabilidade. Basta citar as emendas parlamentares que somaram, em valores pagos, R$ 15,90 bilhões em 2021, R$ 17,02 bilhões em 2022, R$ 21,91 bilhões em 2023 e R$ 24,88 bilhões em 2024. Em apenas quatro anos, foram empenhados R$ 132,94 bilhões e, desses, R$ 79,71 bilhões pagos em apenas quatro anos. As chamadas Emendas Pix viraram sinônimo de repasse de recursos públicos sem transparência, driblando a fiscalização e facilitando gastos ineficientes, improbidades administrativas e corrupção.
Ao contrário do que Brasília quer fazer crer, o dólar não chegou a R$ 6,20 por obra do acaso ou pela ação especulativa das instituições financeiras da Avenida Faria Lima, mas sim pelo descontrole das despesas primárias, pelos déficits, pela explosão do endividamento, e pela inflação crescente e acima do teto
Têm também a assinatura dos maus governantes os déficits causados por ações para abrigar aliados. O expressivo rombo das Previdências Sociais (RGPS + Servidores Públicos), com estimados R$ 940 a R$ 950 bilhões em 2024, o correspondente a 8% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Some-se ainda o déficit primário do governo federal, da ordem de R$ 105 a R$ 115 bilhões, e o déficit nominal do governo federal, que soma de R$ 1,093 a R$ 1,120 trilhão, nada menos do que 9,4% a 9,5% do PIB.
A dívida pública chegou ao inacreditável patamar entre R$ 9,10 a R$ 9,20 trilhões, o correspondente a mais de três quartos do PIB (de 77,5% a 78,0%). As consequências disso são catastróficas. Basta analisar a situação com atenção à evolução da taxa Selic. Em maio de 2024, a taxa Selic era de 10,50% ao ano. Em dezembro, fechou em 12,25% ao ano, ou seja, aumento de 1,75 ponto percentual em sete meses. Com isso, em 2025 os juros adicionais da dívida pública brasileira chegarão a R$ 161 bilhões por ano se a taxa Selic for mantida em 12,25%. O cenário mais provável, entretanto, é o de que a taxa média da Selic fique em 13,50%, o que significa que os juros adicionais em 2025 chegarão a R$ 230 bilhões por ano. Um cenário ainda pior que o de 2024, em que o país pagou em juros do setor público de R$ 950 bilhões a R$ 1 trilhão, o correspondente a 8,5% do PIB.
Os números oficiais mostram o tamanho da gastança do governo federal em 2024. Será de R$ 5,4 a R$ 5,5 trilhões, o equivalente a 45,8% do PIB, na primeira hipótese, ou a 46,5% do PIB, na segunda situação. É mais do que o dobro de toda a arrecadação tributária federal, que fechará 2024 somando R$ 2,2 trilhões. A conta não fecha porque o governo federal arrecada apenas 18% do PIB e gasta mais de 45% do PIB, sendo 9% a 10% apenas com juros sobre dívidas e outros 20% com gastos primários. O déficit também é grande nas empresas estatais. As estatais federais, que foram lucrativas no recente 2022, fecham o ano de 2024 com déficit de R$ 3,70 bilhões, e as estaduais com valor ainda maior, R$ 3,9 bilhões. No total, são R$ 7,6 bilhões de rombo.
Como saúvas vivendo das árvores frondosas, os privilegiados na nação sugam as reservas nacionais. Alimentam-se de emendas parlamentares e penduricalhos que somam dezenas de bilhões de reais por ano em vencimentos acima do teto constitucional dos ministros do STF. Sem constrangimento, esposas de não um, mas sim quatro ministros de Estado foram nomeada para cargo vitalício nos Tribunais de Contas Estaduais, todas com remuneração básica superior a R$ 38 mil, gastos esses acrescidos de penduricalhos, veículo oficial, motorista, plano de saúde generoso e outros benefícios. São bons exemplos de desperdício e gastança, e maus exemplos de moralidade.
Enquanto isso, a nação vive com juros altos (taxa Selic de 12,25% ao ano), inflação prevista de 4,85% ao ano, uma das maiores cargas tributárias do mundo (de 32,5% a 33,4% do PIB) e com a maior tributação mundial sobre consumo (de 27,5% a 28,5%), o que sacrifica especialmente a população mais pobre porque impacta no preço da cesta básica e demais gêneros alimentícios e outros de primeira necessidade.
É muita gastança de dinheiro público para pouco resultado na qualidade de vida do cidadão brasileiro. Não é à toa que o Brasil está reprovado em todos os indicadores sociais – Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), Índice de Retorno de Bem Estar Social (IRBES), coeficiente Gini (indicador socioeconômico que mensura a distribuição de renda), e Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), entre outros –, além de amargar índices alarmantes de violência urbana, de corrupção, de impunidade e de desigualdades regionais, sociais, raciais e educacionais. Além disso, a renda média per capita do brasileiro continua muito baixa, apenas R$ 1.848,00/mês referente ano de 2023, ou o equivalente a 1,42 salários-mínimos (base 2023) ou a US$ 364,00/mês, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), órgão vinculado ao Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO).
Com esse cenário, onde a gastança é a regra, nenhum governante pode assegurar que o país vem melhorando se todos os indicadores sociais degradaram nas últimas décadas e se hoje, em pleno século XXI, tenhamos 33% da população nacional vivendo na pobreza, apesar de o Brasil ser a 8ª economia do mundo. Esse é o verdadeiro legado dos maus governantes, encoberto pelo silêncio de grande parte da sociedade civil e da mídia.
Ao contrário do que Brasília quer fazer crer, o dólar não chegou a R$ 6,20 por obra do acaso ou pela ação especulativa das instituições financeiras da Avenida Faria Lima, mas sim pelo descontrole das despesas primárias, pela gastança, pelos déficits, pela explosão do endividamento, e pela inflação crescente e acima do teto da meta, conjunto que pune todos os brasileiros, sobretudo os assalariados e aposentados que têm remuneração de apenas um salário-mínimo mensal.
Esse cenário pode mudar não apenas com medicas econômicas, mas com uma série de alterações legislativas como o fim da reeleição para cargos do Executivo, a imprescritibilidade de crimes praticados contra a administração pública, a volta da possibilidade de prisão após decisão colegiada em segunda instância, proibição de manifestação de ministros das cortes superiores fora dos autos, além da independência total da mídia, absolutas liberdade política, de expressão e econômica, e absoluta transparência nas ações do Executivo, do Legislativo e do Judiciário.
É o momento de reconhecimento dos erros, e não só de reconhecer, mas de pôr fim a eles e adotar novas e melhores práticas, além do fim dos ufanismos descabidos, sem resultado efetivo para a melhoria de vida dos cidadãos. Einstein já dizia que “insanidade é fazer a mesma coisa, repetidamente (gastar mais do que arrecada) e esperar resultados diferentes (atingir déficit ZERO)”. Não é mais possível adiar a prevalência da verdade e da transparência, verdadeiros faróis para iluminar o caminho que a nação deve seguir.
Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva”, “Caminhos para um país sem rumo” e “Brasil: Que país é este?”. Site: https://samuelhanan.com.br