Por dentro do Museu
Um rapaz na casa dos vinte chega à porta da administração de um museu, destinado à história da pequena Campo Mourão, no Paraná, vindo de outra cidade próxima. Sem muita cerimônia, apesar de muito educado, faz uma pergunta ao dirigente da instituição. Sem cerimônia, mas também sem muita esperança na voz.
Desejava uma foto, umazinha que fosse, do bisavô, um dos pioneiros na rede local de comércio e serviços. Revelou que foi à empresa fundada pelo antepassado na expectativa de alguma imagem dele, mas em vão, pois o próprio estabelecimento nada guardava de sua história. Ao fim de uma breve descrição de sua pequena epopeia do dia, disse o nome do bisavô, ao que o diretor do museu respondeu prontamente: “eu tenho”.
Mas a resposta do dirigente foi tão “prontamente” mesmo, que o rapaz em roupas de viagem parece não ter percebido, inconscientemente já debruçado na certeza de uma vã procura. O diretor, percebendo o despercebido, repetiu mais claramente: “sim, tenho fotos do seu bisavô”. O garoto ficou espantado, com a típica cara de “como assim?”, mas acompanhada de um sorriso vitorioso, ainda que um tanto incrédulo. Em rápida pesquisa, o diretor não só achou duas imagens como também as enviou ao aplicativo de mensagens do celular do jovem.
Naquele momento, o rapaz que não se distanciava tanto assim da infância parecia um menino ansioso para mostrar em casa uma boa nota na escola, um pequeno troféu de seu time mambembe de futebol ou um presente comprado com todas as moedas guardadas após um ano de pequenos trabalhos. “Meu pai não vai acreditar!”
Em um dia não muito distante, apareceu à mesma porta loquaz senhora chegada da metrópole paulistana. Após um discurso nem de longe tão breve quanto o do rapaz que buscava reminiscências do bisavô, indagou sobre a foto de um endereço local, se possível antiga, anterior ao prédio da grande empresa que agora o ocupa. Nascera naquele endereço, onde ficava uma humilde casa de seus antepassados. Em consulta-relâmpago à base de dados informatizada do museu, o diretor exibiu na tela a desejada imagem. A verborreia da visitante deu lugar a um contentamento tão evidente que seu cérebro parou de se ocupar com a boca muito falante e a usou para coisa melhor: um sorriso que já valia por mil palavras – ou um milhão, no caso da personagem em questão. Um daqueles sorrisos reais e incontestáveis, que só boas lembranças suscitam.
Presenciei essas duas cenas, assim como outras, quando me voluntariei a ajudar a digitalizar o acervo fotográfico do museu.
É interessante como quase sempre pensamos em museus como mais que importantes locais para preservação da história, mas de um modo coletivo, de certa forma distante de nós. Afeito a instituições desse tipo, já me encantei por diversas delas, pequenas e grandes, inclusive alguns dos mais importantes do planeta – não tantos quanto ainda pretendo ver. Mas algo me chamou a atenção naquela simples casa mourãoense pintada de branco em destacado endereço na área central: é tão fácil pensar no coletivo quando o assunto é museu, que nos espantamos na percepção de que também diz respeito ao individual. Naqueles dois dias, vi duas pessoas saindo de lá com presentes, mas não dos comprados nas típicas lojinhas de souvenires. Era algo que dizia respeito a eles mesmos, ao cerne de suas existências, à história que não está só em livros, mas presente da porta para dentro em seus lares.
Assim como o rapaz cansado da estrada e a prolixa senhora radicada na Terra da Garoa, eu gostaria que mais mourãoenses entrassem na bonita e recém-reformada casa branca de esquina e percebessem o quanto cada foto, objeto, texto, pintura, escultura ou qualquer outra expressão material da história diz respeito a suas vidas da mesma forma: da porta para dentro, dos olhos para dentro, em uma interatividade direta entre a pessoa e o acervo.
Crianças podem ver como os avós compravam um utensílio e o levavam para casa embrulhado em papel estampado com o nome da loja, em uma feliz simulação de um antigo comércio local, com os móveis – e até um rolo do referido papel – originais dispostos em uma sala. Adultos segurarão – ou não, de preferência – uma lágrima ao verem remontada a copa doméstica com o guarda-comida e seus objetos dispostos como se alguma veterana da família fosse entrar pela porta naquele momento para passar e servir um cafezinho no bule esmaltado, nas tão familiares xícaras que várias famílias locais tinham em comum, já que compravam seus bens dos mesmos lojistas.
Qualquer um pode ver, bem antes de suas famílias erguerem suas casas de madeira de pinheiro, como os povos originais viviam nesta terra, como testemunham os objetos originais, alguns de dezenas de milhares de anos atrás, e antes deles dinossauros que, como muita criança já se espantou ao perceber, não são tão diferentes dos que nos mostra o cinema atual, e podem ter pisado exatamente no mesmo local agora também pisado pelo visitante do museu.
Cidadãos de qualquer idade podem descobrir quem foram Capitão Índio Bandeira, Irmãos Pereira, Afonso Botelho, Roberto Brzezinski – que, para espanto de muitos, não foram só ruas, vejam só. Também podem ver parentes seus nos muitos registros fotográficos espalhados pelas paredes e até por telas de vídeo. Podem descobrir que a maior empresa local tem mais a ver com cada cidadão do que muitos pensavam e leva o nome da cidade até para fora do território nacional.
Se em sua família os registros estão meio perdidos ou um tanto apagados, recorra ao Museu Deolindo Mendes Pereira. Será bem atendido e o resultado pode surpreender os dois lados. Se, por outro lado, seus familiares mantém viva a história de quem os fez chegarem até aqui, compartilhe com a instituição que foi feita para preservar o que não podemos, de forma alguma, deixar morrer.
Se eu, que sou mourãoense de coração há tão pouco tempo, já me enterneço ao ver pessoas em contato direto com seu passado, imagine se meus familiares tivessem vivido aqui. Fui criado em cidades com mais de trezentos ou quatrocentos anos, o que pode ser considerado bem antigo em se falando de Brasil, e confesso que não esperava ver um tão bem conservado e disponível acervo sobre uma cidade um tanto quanto pequena, quase da mesma idade que meu pai. Isso é raro em um país sempre acusado – nesse caso injustamente – de não preservar sua memória como necessário. Todo mourãoense que passa distraidamente pela frente daquela varanda em arcos, em uma esquina ao lado da praça principal da cidade, não sabe a sorte que tem. Muito da história do lugar em que vive reunida num só lugar, ao alcance de todos, bastando para isso cruzar os referidos arcos e entrar em uma viagem no tempo que, por mais clichê que seja descrita dessa forma, é real. Eu, que já morei em tantas cidades, comecei com o pé direito a conhecer aquela que pretendo chamar de minha pela primeira vez.
E agora posso dizer que conheço essa história, apesar de felizmente ainda ter muito a descobrir, pelo lado de dentro, encantado com sorrisos de quem descobriu um pouco mais de si querendo saber sobre sua cidade.
Por Marcelo Cypriano