A história das ruínas de Vila Rica do Espírito Santo

Tombadas pelo Patrimônio Histórico Estadual do Paraná, em 1948, as ruínas espanholas do Parque Estadual de Vila Rica do Espírito Santo, de Fênix, continuam restritas à visitação pública. Desde a fundação de Vila Rica, em 1589, já são 435 anos. Trata-se de importante vestígio da ocupação espanhola na América do Sul, ainda protegido. A maior parte foi vandalizada e não está mais acessível à população brasileira. No entanto, mesmo despertando a curiosidade na área das ruínas, parte está fora do parque, em área de plantações particulares. Muito já foi destruído, mesmo em áreas do Parque, principalmente, na área onde passavam estradas e uma balsa.

Com o tempo, mudanças climáticas também proporcionaram variações nas vazões e níveis do rio Ivaí, provocando impactos nessa região. A cidade espanhola possuía, em 1610, cerca de 100 espanhóis e dois mil indígenas Guaranis. Agora está sob a terra, em meio a plantações de milho de propriedades particulares. Apenas uma parte está protegida sob mata secundária próximo ao rio Ivaí. São ruínas em taipa de pilão, em argila, que sob o efeito das chuvas rapidamente se desmancham, como aconteceu na área das plantações agrícolas que consumiram as evidências arqueológicas.

O local também foi bastante vandalizado por caçadores de tesouros, descaracterizando parte do seu acervo histórico. Mas diante de todos os aspectos ainda paira a pergunta: qual seria a melhor estratégia para expor, em áreas públicas ou particulares, essas evidências? Isso atrairia mais turistas? Mostraria a relevância desses momentos históricos? A beleza articulada com a proteção ambiental? O respeito à nossa memória, em espaços privados ou públicos?

A Coordenadora do Núcleo de Arqueologia do Museu Paranaense e responsável pela gestão da exposição e curadoria de acervo arqueológico, a mourãoense Cláudia Parellada é uma expert do assunto. Com inúmeros trabalhos ali, ela é enfática: É possível sim, a partir de planejamentos estratégicos e articulações com proprietários de áreas rurais limítrofes ao Parque, criar novas áreas de visitação e evidenciar os bens arqueológicos numa paisagem deslumbrante. Ela explica que precisam ser adquiridas áreas ao entorno do parque. Isso porque parte do que foi um dia a cidade, pertence hoje a agricultores locais. Ou seja, parte das ruínas continua enterrada sob lavouras de milho e soja. “Os materiais lá encontrados já estão aflorando. Há algum tempo existem negociações, mas infelizmente não houve sucesso”, disse ela.

Cláudia explica que, o que sobrou das ruínas se transformou em uma estrutura compactada de argila. Uma espécie de pequenos morros sob a vegetação, que cresceu sobre ela. “Todas as outras áreas abertas ao público, com esse tipo de estrutura se desmancharam. Não adiantando nem a proteção de vidros e coberturas. E isso, mesmo em países com maior experiência. Teríamos que ter uma estratégia de levar o público”, disse. Praticamente o que se vê hoje, materialmente falando, se resume a fragmentos de telhas cerâmicas de antiga construção numa praça central, possivelmente uma das igrejas lá construídas.

Ao longo dos anos, pesquisadores mapearam as ruínas, encontrando inúmeros objetos

“Na verdade as telhas nem deveriam estar aparecendo. Isso porque têm pessoas remexendo as áreas mapeadas. Tudo era para estar coberto pela mata. Uma forma de proteção. Pelo menos por enquanto, até se pensar em estratégias que realmente consigam expor sem desmanchar tudo”, afirmou Cláudia.

Estudiosa no tema, Cláudia explica que as ruínas de Fênix são a segunda fundação da terceira cidade espanhola construída no Paraná. Os vestígios da primeira Vila Rica localizam-se em Nova Cantu. “Em Itaguajé e Santo Inácio, existem ruínas de uma mesma época. Só que eram missões jesuíticas-indígenas, diferente de Vila Rica, que era uma cidade espanhola. Trabalho com esses bens, e até equívocos confundindo áreas de antigas cidades espanholas com missões jesuíticas fazem. Talvez as crianças do futuro consigam entender o patrimônio como vivo e que deve ser preservado. Todo o restante está muito impactado, mesmo o Parque de Vila Rica já foi muito impactado”, observou ela.

A reportagem entrou em contato com os donos da terra, ao lado do parque, onde está parte das ruínas. Um deles confirmou já ter encontrado um antigo cachimbo de pedra em sua lavoura. “Entregamos ao museu. Fora isso, nada mais foi localizado”, disse. Segundo ele, a propriedade tem três alqueires e pertence à família há 30 anos. “Nunca ninguém nos procurou para comprar a terra, muito menos o governo”, afirmou.

“Acho importante que os proprietários rurais colaborem na proteção. Mesmo se as áreas não forem negociadas com o poder público, podem ser espaços de visitação, articulados com esses proprietários. Ficaria interessante”, destacou Cláudia. Para ela, há a necessidade de se entrelaçar forças de organizações públicas e da sociedade como um todo.

História

Em 1554, o capitão espanhol Garcia de Vergara fundou a primeira vila espanhola do Guairá: Ontiveros, às margens do rio Paraná, uma légua acima do grande salto que, devido a conflitos políticos, só resistiu até 1556. No mesmo ano, o governador Irala, do Paraguai, resolveu fundar uma segunda comunidade, enviando o capitão Ruy Diaz de Melgarejo. Então às margens do Rio Piquiri, ergueu a Ciudad Real del Guairá, no município de Terra Roxa, para onde foram transferidos os que restavam em Ontiveros.

Em 1632 toda a cidade foi destruída. O que restou acabou compactado em morros de argila

Em Ciudad Real, com área de 840.000 m2, havia uma pequena fábrica de tecidos, além do comércio da erva-mate e do plantio da cana de açúcar, milho e mandioca. Foram identificados sinos em cerâmica e materiais usados em processos para obtenção de açúcar, expostos agora no Museu Paranaense, em Curitiba.

Em fevereiro de 1570, Melgarejo, com 40 homens e 53 cavalos, fundou a Villa Rica del Espiritu Santo – no município de Nova Cantu, em terras do líder Guarani Coraciberá, área onde poderiam extrair ferro e cobre. Na época, ele também ordenou a construção de uma igreja e, também, de uma fortaleza com telhas em pinho. A primeira fundação de Vila Rica também foi chamada como Tambo das Minas de Ferro.

Melgarejo traçou a estrutura urbana e repartiu terrenos para a construção de casas dentro da vila e terras para chácaras. Além de indígenas para serviços domésticos e trabalhos agrícolas, deixou 24 soldados. No entanto, 19 anos depois, devido a uma epidemia de varíola, que provocou muitas mortes entre indígenas e espanhóis, o capitão Guzman determinou a transferência de Vila Rica – de Nova Cantu, para junto a confluência do Corumbataí no Ivaí, agora em Fênix.

Cidades coloniais espanholas no Paraná

As cidades coloniais espanholas do final do século XVI, como as ruínas de Fênix, foram baseadas em modelo codificado na lei de 1573 de Felipe II, a primeira lei urbanística da Idade Moderna. Este modelo seria um “enxadrezado de ruas retilíneas” que definiam uma série de quadras iguais, quase sempre quadradas, com a praça no centro. A lei ressaltava que os terrenos ao redor da praça deveriam ser reservados à Igreja, aos edifícios reais e municipais, modelo semelhante praticado até hoje em muitas cidades do estado.

A área urbana da segunda fundação de Villa Rica, Fênix, possuía cerca de 300 mil metros quadrados, ruas com 10 a 12m de largura, que se cruzavam em ângulos retos. A maioria das quadras media 100 x 100m, cercadas por muros em taipa de pilão, com altura de até 1,80m e largura variando de 0,60 a 0,90m. Dentro das quadras havia divisões internas, delimitando terrenos, e no interior se encontravam vestígios de casas em taipa de pilão, além de buracos ovalados. Estes buracos foram causados pela extração da matéria-prima para a taipa de pilão, e depois usados para diferentes fins, alguns podem ter sido habitação de indígenas que moravam na cidade.

A maior parte das 63 casas em taipa de pilão era pequena, com dimensões variando de 4 x 4m a 16 x 22m. Já as espessuras das paredes das casas variavam de 0,60 a 0,70m, predominando as com 0,60m. As paredes dos muros, entretanto, tinham espessura variando de 0,60 a 0,90m. No canto sudoeste da praça está a ruína da igreja, com 15x 27m, em taipa de pilão, cobertura de telhas cerâmicas coloniais, e certamente beirais.

Na área urbana de Vila Rica havia uma igreja jesuítica, dedicada a São João Batista, com três naves, e uma casa para os padres residentes. Lá também existia um cemitério, ao lado da igreja matriz. Provavelmente, ao redor da praça estavam a cadeia pública e a prefeitura, além de duas casas de religiosos.

Foram identificadas construções em alvenaria de pedra: dois poços para captação de água e fornos para fundição de metais. Estão em área central, e possivelmente deveriam existir outros distribuídos pela malha urbana.

Os fornos de fundição de metais, provavelmente do tipo catalão, estão caracterizados em Vila Rica por estruturas em pedra e pela presença de escória de ferro, e estão nas proximidades do rio Ivaí. As escórias estão espalhadas por várias partes da área urbana, evidenciando que elas possam ter sido usadas com vários fins, como, por exemplo, cascalho de ruas, e até mesmo na taipa de pilão.

Existiam casas subterrâneas dentro da área urbana, com formatos circulares a ovalados, que ainda estão sendo mapeadas e que provavelmente eram ocupadas por índios Guarani. A taipa de pilão, principal técnica construtiva usada em paredes e muros de Vila Rica, não é mais que uma massa de terra fortemente comprimida, da qual se faziam blocos, através de um molde especial denominado taipal ou caixa. A taipa de Vila Rica caracteriza-se como sendo sedimentos argilosos vermelhos com pedriscos de basalto, que sofreram forte compressão através de pilões.

Cidades e missões jesuíticas no Guairá

O Estado espanhol tinha uma profunda ligação com a igreja, e já através dos textos das “Capitulaciones de la Real Provisión de 1526” se fizeram constar os fins espirituais da conquista, juntamente com os políticos.

Em 1588, vieram ao Guairá os padres jesuítas Manuel Ortega, português, e Tomas Fields, irlandês, permanecendo quatro meses em Vila Rica. Eles atendiam tanto os espanhóis quanto aos índios, fazendo batismos, matrimônios e ainda pregando o evangelho através de incursões pelas aldeias indígenas.

Na verdade, na época, os políticos insistiam na importância do catecismo de indígenas do Guairá, principalmente, por serem numerosos em relação à quantidade de espanhóis. Seria uma estratégia para conquistar a região sem armas. Diante de pesquisas levantou-se que Ciudad Real e Vila Rica possuíam, respectivamente 30 e 100 colonos espanhóis, e ao seu redor cerca de 150.000 índios.

Destruição e abandono na Província do Guairá

Em 1630, os colonos espanhóis queriam aumentar a extração da erva-mate, através da submissão de um número crescente de indígenas. O fato provocou conflitos intensos com os jesuítas, fragilizando a proteção do Guairá. Também havia cidades endividadas, com os preços elevados de produtos no início do século XVII, como tecidos, vinho, sal e pólvora. Vila Rica e outras cidades coloniais, distantes dos grandes centros, tinham dificuldade em obter bens, e a maioria dos materiais cotidianos tinha que ser produzido no próprio local.

As epidemias de doenças, como gripe, sarampo e varíola, também reduziram drasticamente os povos nativos, mas afetavam também a saúde dos conquistadores. Desde 1585, os bandeirantes paulistas atacavam a Província do Guairá para capturar indígenas, para vendê-los para trabalhos domésticos e agrícolas. Em 1627, com a bandeira comandada por Raposo Tavares, ocorreu a destruição da primeira missão jesuítica, San Antonio, e assim foram sendo arrasadas até 1631.

Na bandeira de 1628, Manuel Preto, um dos bandeirantes mais ativos naquela região, acabou sendo morto, o que provocou uma reação de grandes proporções comandada por Raposo Tavares que assolou o Guairá em 1631. Foram levados do Guairá para São Paulo, entre 1628 e 1630, mais de 50 mil indígenas.

Em 1630, foram expedidas mensagens do Governador do Paraguai ordenando que os espanhóis de Vila Rica e Ciudad Real não auxiliassem com armas de fogo as missões jesuíticas, que sofriam ataques dos paulistas. Depois, as próprias cidades acabaram sendo destruídas.

Os jesuítas, cientes do perigo iminente, decidiram abandonar as duas maiores missões: San Ignácio Mini e Loreto, organizando a fuga, pelos rios Paranapanema e Paraná, de cerca de doze mil índios através de 700 balsas.

Com a bandeira de 1632, Vila Rica foi sitiada por três meses e destruída, e seus moradores acabaram se transferindo para a banda ocidental do rio Paraná, porém parte deles foi para São Paulo . Os cidadãos de Ciudad Real del Guairá a abandonaram, temendo o mesmo destino de Villa Rica, muitos voltaram a Asunción. Villa Rica existe, até hoje, no Paraguai, em sua oitava fundação.

Parque Estadual

Após a lei estadual de 17 de janeiro de 1948, caracterizando a área como reserva do patrimônio histórico, em 17 de junho de 1965 foi assinado o Decreto nº 17.790 criando a Reserva Florestal Estadual de Vila Rica do Espírito Santo. Em 16 de fevereiro de 1983, o local transformou-se no Parque Estadual Vila Rica do Espírito Santo, quando foi assinado o Decreto Estadual n° 6.125.

O Parque inserido no Bioma de Mata Atlântica, preserva um dos últimos remanescentes da floresta tropical, abrigando diversas espécies de fauna e flora, numa floresta que foi quase extinta na região tornando-se rara, principalmente pelas atividades agropecuárias, onde florestas inteiras foram derrubadas para abrigar pastagens, plantações e para beneficiar o setor madeireiro.

O Museu Paranaense, desde 1954, desenvolve inúmeras pesquisas arqueológicas e levantamentos históricos, procurando a identificação de novos sítios e o monitoramento dos já cadastrados. Destas atividades, cerâmicas e artefatos dos índios Guaranis, encontrados no local, são exibidas no museu que funciona dentro do parque (inaugurado em 15 de novembro de 1990), além de diversos fragmentos e objetos indígenas, como uma urna funerária contendo um esqueleto e outros objetos da redução.

Localizado no município de Fênix – 58 km de Campo Mourão, o parque recebe a visitação média de mil pessoas ao mês. A entrada é gratuita. Nele o visitante pode visitar o museu, assim como caminhar por trilhas. Apenas a parte das ruínas não está aberta ao público.

Serviço

O Parque Estadual de Vila Rica do Espírito Santo está localizado em Fênix, 58 km de Campo Mourão e 412 km de Curitiba. A visitação é gratuita. Apenas no caso de excursões exige-se um pré-agendamento. Mais informações pelo (41) 99554-1971 e (44) 99935-3633.

* Reportagem com ajuda da pesquisa de Cláudia Parellada