A história do generoso ‘Miro’, o fiel servidor de ‘Jango’

João Goulart, ex-presidente do Brasil, morreu em 1976. Leonel Brizola, ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, deixou o plano terreno em 2004. Argemiro Etevaldo Dorneles foi recentemente, em 2022. Em comum, além de gaúchos, os três se ajudaram mutuamente antes e após o golpe de 64. Conhecido por “Miro”, o último chegou a morar por sete anos em Peabiru, onde vivia a serenidade dos anos, sempre relembrando um passado difícil de ser esquecido. Mas, embora não figurasse no cenário político, diretamente, colaborou com os dois primeiros no que pôde. Não é exagero dizer que “Miro” viu, sentiu, escutou e presenciou parte da história do Brasil, nos bastidores. Foi testemunha de um passado ainda repleto de mistérios, erros e injustiças.

“Miro” sempre teve o coração aberto, generoso. De uma certa forma, preferia estender a mão a ser ajudado. Zeloso com a família e amigos, jamais deixou de estar presente, mesmo às distâncias. Nasceu em 28 de junho de 42, em São Borja, no Rio Grande do Sul, num berço cercado pela política. O pai, José Francisco Silva Dorneles era agricultor. Morava vizinho das terras da família do ex-presidente João Goulart. Ao mesmo tempo, também era uma espécie de inspetor de quarteirão. Tinha poderes como um subdelegado, embora não recebesse por isso. A mãe, Felícia Guedes, cuidava do lar e, consequentemente, dos cinco filhos do casal.

Crescendo no ambiente rural, sem malícias e sem as perversidades da cidade, “Miro” foi “esculpido” por uma bela educação. E, certamente, acabou moldado pela suavidade e o carinho da própria mãe. Ele viu o pai pela última vez aos cinco anos de idade. E segundo a família, teria ido tarde demais. “Miro” não suportava vê-lo maltratando a mãe. Conta-se que, no exercício da função, José matou dois, numa carreira de cavalos.

Após o crime, acabou detido. E depois sumiu à Argentina. Lá fez outra família, não retornando mais ao Brasil. Agora sozinha, Felícia se viu em apuros financeiros. Ela não tinha condições de cuidar da prole. Então foi apoiada pelos Goulart. Jango – apelido de João Goulart -, passou a cuidar de Arthur, o filho mais velho de Felícia. Outro irmão de “Jango”, Ivan, cuidou de Adão. Já a irmã Yolanda ficou com “Miro”. A mãe de “Jango”, dona Dinoca, cuidou de Eda. E por fim, o cunhado Leonel Brizola, ficou com Edegar. Brizola e João Goulart eram cunhados. E é por este e outros motivos que “Miro” nasceu envolto à política daquela época. De uma certa forma, a política se discutia em casa.

Felícia nunca abandonou a Fazenda dos Coqueiros, onde teve os filhos e viveu com o esposo. Após abandonar a família, José morreu em 1961, quando estava no Paraguai. Anos depois, o filho Arthur foi até lá e trouxe os restos mortais dele para Itacurubi (RS), terra onde nasceu. Conta-se que ainda jovem, 1934, José passou a trabalhar como empregado na mesma fazenda de Jango. Ali produzia trigo e linhaça. Então, de empregado virou amigo do ex-presidente, muito antes do mesmo se tornar presidente, em 1961.

Mãe de “Miro”, Felícia viu os cinco filhos sendo criados pela família Goulart

Entranhado na família dos Goulart, “Miro” foi quase “adotado” por Yolanda – irmã de Jango -, a quem chamava carinhosamente como “Tia Landa”. Aos 17, em 1959, já estava em Porto Alegre, estudando no Colégio Marista Rosário. Ele teria ido até a capital com o único objetivo de estudar. Mas não cumpriu com o trato. Morando num ambiente da alta sociedade, acabou achando que também tinha dinheiro. Então relaxou e parou com os estudos, voltando à São Borja no final dos anos 60. Antes de morrer teria confidenciado à filha o maior de seus arrependimentos na vida: não ter estudado o suficiente. Ele sempre dizia que o estudo, ninguém tira da gente.

Sua proximidade com João Goulart e Brizola era enorme. Praticamente, da mesma família, chegando a se filiar ao PTB. Politizado, chegou por inúmeras vezes a sair de madrugada com Brizola. Juntos, entre agosto e setembro de 1961, colavam cartazes nos postes de Porto Alegre alertando sobre a Campanha da Legalidade – mobilização civil para garantir a posse de Jango e a consequente continuidade da democracia. “Miro” era da total confiança do ex-presidente. Em Brasília, adentrava ao Palácio da Alvorada sem agenda marcada.

A campanha da Legalidade ajudou na posse de João Goulart, que acabou ocupando a cadeira presidencial com a renúncia de Jânio Quadros. No entanto, três anos depois, em 64, veio o golpe militar apoiado pelos Estados Unidos. Jango foi “expulso” do poder. À ele, recaíam acusações de que iria transformar o país numa vermelhidão comunista. Mas o enredo não era verdadeiro. Como conta Helena Dorneles, sobrinha de “Miro” e, cujo pai, Arthur, arrendava terras de Jango.

“Ele nunca foi comunista. Ele gostava de dinheiro. E era de direita. Por inúmeras vezes fui com meu pai até o Uruguai levar dinheiro em espécie pra ele. Sacos de dinheiro”, revelou. De acordo com ela, o dinheiro era resultado de negócios das terras do ex-presidente, no Brasil. Entre eles, o arrendamento à “Miro”, Arthur e Adão – três dos cinco irmãos. “Levávamos o dinheiro até lá porque ele estava exilado. Não podia entrar no Brasil”, lembrou ela.

Além de João Goulart, Brizola também ficou exilado por 15 anos. Helena se recorda que, após a volta de Brizola do exílio, a primeira reunião política aconteceu em sua casa, em São Borja. Hoje, aos 61, ela continua morando na mesma cidade.

Após deixar o exílio, Brizola faz a primeira reunião na casa do irmão de Miro, Arthur

A volta da capital e o início na agricultura

Agora, aos 20 e poucos anos, após parar de estudar, “Miro” foi obrigado a retornar a São Borja. Mais uma vez, foi ajudado por João Goulart, que arrendou a ele parte de uma fazenda sua na região de Cinamomo, no município de Itaqui. Adentrou à área em 1970. Mesmo ano em que conheceu a primeira esposa, Clara. Naquele tempo, a menina de 16 anos era vizinha às suas terras. Após se conhecerem, ela caiu na conversa do rapaz de 28. Se casaram e tiveram uma filha, Cristiane, atualmente com 51 anos, residente em Porto Alegre.

Até hoje, ainda há muita contradição sobre as terras em que “Miro” morou. Em vida teria relatado à família que Jango as deu a ele, como um presente. Uma espécie de retribuição ao que fez pelo amigo. Mas ao mesmo tempo, narrou que ia até o Uruguai levar o dinheiro do arrendamento ao, agora, ex-presidente exilado. “Miro” teria começado do zero na área. Mas com o tempo, plantando soja, milho e trigo, levantou a propriedade, ficando bem financeiramente.

Pelo menos uma vez ao ano, de 1970 a 1976, ele ia até o Uruguai. Lá, o objetivo era levar a grana do arrendamento às mãos de João Goulart. Clara, esposa na época, confirmou as longas viagens. “Me lembro de ter encontrado o Jango no Uruguai com o Miro. Lá até brinquei com ele. Disse que ali não era o lugar dele”, lembrou.

Em uma conversa no Facebook, um ano antes de morrer, “Miro” escreveu a uma amiga que sua persistência na agricultura o levou à fartura. “Fui um fiel servidor de Jango. Depois virei agricultor. Fui bem de vida. Tinha uma equipe completa mecanizada de lavoura, caminhão, camionete e carro para a família. Mas, em cinco anos, tivemos três secas. E os negócios deram para trás. Tive um seguro agrícola negado pelo banco. Vendi minha casa para pagar a dívida”, contou.

“Miro” era daqueles agricultores fervorosos. Deixava suor, lágrimas e sangue no campo. Por vezes, era pego na janela da casa olhando ao céu e orando para que chovesse ou, parasse de chover. Sempre honesto, sabia do fardo pesado em não honrar suas dívidas. E, as possíveis consequências no atraso delas. E para que o equilíbrio das contas e o resultado da lavoura se mantivesse, não bastava apenas trabalhar. Mas ter ajuda de São Pedro.

Os ganhos na lavoura também o ajudaram a criar e formar as três filhas e uma enteada: a fisioterapeuta Cristiane, do primeiro casamento, a zootecnista Cristian Kelen e a historiadora Helen, do segundo. Além delas, colaborou na formação da dentista Ivana Denise, sua enteada. Sempre generoso, fez mais do que devia. Também colaborou com um sobrinho na sua formação de medicina. E chegou a presentear o próprio sogro com um Maverick zero quilômetro em São Borja. “Meu pai era taxista. Ele decidiu o ajudar, o presenteando com o carro. Foi um gesto muito bonito da parte dele”, disse Clara.

Sobrinha e afilhada de “Miro”, Helena Dorneles conta que o pai, Arthur, também era um dos arrendatários de Jango. Por vezes, ela o acompanhou até o Uruguai para levar muito dinheiro em espécie ao presidente exilado. “Levávamos sacos de dinheiro. Tudo fruto dos negócios dele aqui no Brasil”, disse. De acordo com ela, tanto o pai como o tio “Miro” pagavam 10% dos seus ganhos. “Algumas vezes, além do dinheiro, também levávamos ambrosia e pão feito pela minha avó Felícia. Jango adorava a comida dela”, lembrou.

A viagem ao Uruguai com um Major e os planos para trazer Jango de volta

“Miro” contou às filhas que, certa vez, seu irmão Arthur repassou a ele uma missão: que levasse um Major até o Uruguai. O objetivo era ver Jango. Então na boléia, “Miro” apanhou o militar, Serafim Dornelles Vargas, ainda às 4 horas da manhã. “O Arthur já me alertava que o Major não gostava de atrasos”, disse ele no vídeo feito pela família. O militar em questão, que tem até nome de rua em São Borja, foi um major de milícias. Além de um próspero comerciante. Um dos mais ricos estancieiros de São Borja. Ele também era sobrinho de Getúlio Vargas.

Às seis da manhã passaram por Alegrete e as sete, já tomavam café em Harmonia. “Depois já agarramos pra Livramento. Eu quem dirigia, porque não gostava de correr”, falou. A verdade é que “Miro” não sabia o que o Major iria fazer no Uruguai, além é claro, de falar com Jango. Após horas na estrada de chão – quase não existia asfalto, finalmente os dois chegaram à fazenda de Jango.

Lá, depois de uma boa prosa, “Miro” notou um ar de tristeza no ex-presidente. E, já na caminhada a pé até o carro, Serafim fala: “Meu filho, o Janguinho não merece passar pelo que está passando. Ele tem um coração muito grande”. Então, adentraram ao veículo e seguiram de volta ao Brasil. Antes disso, “Miro” já havia visitado Jango duas vezes no Uruguai, em Maldonado e Tacuarembó.

No caminho, pararam em Passo da Guarda para almoçar. “Aquele velho não descansava. Almoçou e já entrou no carro”, disse “Miro”. Em seguida, o militar pediu que o deixasse em Uruguaiana. Iria ficar na fazenda de parentes de sua esposa. “De lá você volta pra São Borja. Mas antes vou te contar uma coisa. Se quiser contar pra alguém, você conta”, teria dito o Major à “Miro”.

“Você sabe o que eu vim fazer no Uruguai? Eu conversei com o General Médici – atual presidente do Brasil, para trazer o Janguinho de volta ao país. Pedi a ele que me concedesse essa licença”, revelou o militar à “Miro”. Segundo ele, na conversa com Médici, o presidente teria dito: “Major, o senhor tem que consultar o Ministro da Guerra, o Estado Maior das Forças Armadas. Se o Comando Militar aprovar, eu aprovo”, teria garantido Médici. E o presidente continuou: “Mas tem uma coisa Major. Se for para o senhor fazer um ajuntamento do João Goulart para conspirar contra o governo, quem vai para a cadeia é tu”, o ameaçou, com dedo em riste.

Ouvindo a prosa, “Miro” falou: “Mas então Major, o senhor já pensou, no outro dia a imprensa brasileira noticiando que o sobrinho de Getúlio Vargas é preso por conspirar contra o governo com João Goulart”. Por um instante, um silêncio no carro. A seguir, o Major finalizou: “Olha aqui meu filho, o General Médici, Janguinho e eu, somos homens que honramos nossa palavra”. Então o silêncio perdurou mais um bom tempo. “Miro” não sabia o que falar. No vídeo em que ele narra toda a história, ele se comoveu ao recordar da conversa. E chorou.

O segundo casamento

“Miro” ficou casado com Clara até o final dos anos 70. Segundo ela, os dois eram muito diferentes e ela, imatura. “Eu não tinha noção real do que era o casamento. Não o amava mais”, revelou. No entanto, jamais deixou de demonstrar um carinho verdadeiro pelo ex-companheiro, a quem o define como um homem honesto, digno, amigo e de coração puro. Juntos, tinham um ótimo relacionamento. Mas amor mesmo, não mais.

Então solteiro e continuando nas terras, “Miro” conheceu e se apaixonou por Vera. A moça já tinha dois filhos de outra relação. Com ela viveu uma boa relação por 11 anos, tendo duas filhas, Cristian Kelen e Helen. Mas por volta de 1991, com infinitas brigas conjugais, decidiram colocar um ponto final no casamento. Jamais se divorciaram no papel. Mas como marido e esposa, nunca mais.

E novamente, como no primeiro casamento, a convivência com Vera continou sendo pacífica, respeitosa. “Sempre passávamos o Natal juntos. Ele e minha mãe viviam harmoniosamente. Havia o respeito com a gente e, principalmente, entre eles”, lembrou Helen, a filha mais nova, que reside em Campo Mourão.

O fim dos sonhos da agricultura

Com a idade avançada e também, com as perdas relacionadas as estiagens, a lavoura já não era mais como antes. E para decretar o fim de seu sonho, veio o golpe fatal: familiares de Jango pediram as terras. Tentando evitar o pior, “Miro” adentrou à justiça para requerer a propriedade em usucapião. A ação teve início por volta de 2013. E chegou ao fim em 2015. “Miro” perdeu. E agora, estava distante de tudo aquilo que havia lutado em vida.

A verdade é que “Miro” ficou nas terras de Jango, no Cinamomo, por 45 anos. A perda das terras em si, não foi o grande problema. Mas sim, a forma como tudo ocorreu. Para Helen, a defesa do pai teria errado na ação de usucapião. Também, ao seu ver, não houve nenhuma ação de dignidade por parte da família de João Goulart, que o deixasse pelo menos com uma ínfima parte da propriedade.

“Dos 98 hectares, que deixassem a ele pelo menos um, com a casa, para que não ficasse sem ter onde morar. Em consideração a tudo o que ele fez pelo amigo e presidente. Ele perdeu e destruíram tudo. Meu pai ficou mal não por perder a terra, mas por não ter mais as suas memórias afetivas”, disse. Em tempo: as mesmas terras foram a última parada de Jango antes de ir ao exílio e nunca mais voltar ao país.

Com vergonha da decisão da justiça, ainda em 2015, “Miro” saiu da propriedade e nada falou às filhas. Agora, com uma mão na frente e outra atrás, acabou ajudado pelo irmão, Arthur, com quem passou a morar de favor em São Borja. “Ele escondeu da gente que tinha perdido o processo. E um tempo depois, quando soube, exigi que ele deixasse a casa do tio e viesse ao Paraná, onde eu estava morando. Não podia deixar meu pai naquela situação”, descreveu Cristian Kelen.

Chegada a Peabiru

Zootecnista, Cristian Kelen havia conseguido um emprego em Campo Mourão e já morava na cidade. Em seguida, conheceu e se casou com o noivo, que era de Peabiru. Ela então passou a residir lá. E ao saber da situação do pai, não pensou duas vezes: alugou uma casa, o trazendo do Rio Grande do Sul. “Miro” viveu ali de 2015 a 2022. E, com uma simplicidade de poucos, a casa modesta chegava a ser uma mansão aos seus olhos.

“Meu pai se contentava com muito pouco. O pouco pra ele era muito. Via a felicidade nas coisas simples da vida. Ele passou isso pra mim. E eu quero passar ao meu filho também”, disse a filha. A bem da verdade, o que mais importava a “Miro” era estar ao lado da filha e do neto. Ele era feliz por estar ao lado deles.

Naquela época, sem posses e vivendo apenas de uma pequena aposentadoria, foi muito ajudado pela filha. De um certo modo, a sua felicidade era quando a moça chegava do trabalho. E, enquanto ela ficava fora, ele jogava conversa fora, sempre ao lado do bom e velho chimarrão. Contava as histórias de sua jornada com Brizola e Jango.

“Miro” estudou pouco. Jogou fora toda a oportunidade oferecida pela família Goulart. Fez até o segundo ginasial. Não se preparou para o futuro. Conta a filha que, ainda em Porto Alegre, na casa de Irlanda Goulart, além de estudar, ajudava cuidar da casa. Era comum a tia receber as damas da sociedade nos chás da tarde. E “Miro” era uma espécie de garçom da residência. Tinha que ficar servindo o chá, o tempo todo. E ele não gostava do ritual. Tanto é que, por vezes, esquentava demais as xícaras, até o ponto que as visitas desistissem de segurá-las. Coisas de moleque birrento.

Desde jovem, até sua morada em Peabiru, “Miro” foi muito religioso. Tinha fé. Embora fugisse das igrejas. Ele se resolvia com Deus longe delas. Rezava o terço todos os dias ajoelhado em frente a imagem de Nossa Senhora de Fátima. A imagem, inclusive, existe até hoje. E está em seu túmulo, em Itacurubi.

“Miro”

Para a filha mais nova, Helen, “Miro” era uma pessoa muito simples, humilde e com um coração gigante. Segundo ela, estava sempre com os animais. Comia queijo colonial e dava as cascas aos cachorros. “Ele sempre me chamava pra mostrar um ninho de passarinho que ele tinha descoberto e dizer que o papai do céu fazia tudo certo”.

Diariamente, o pai colocava uma rosa à Nossa Senhora. Pedia pela saúde e pelo bem das três filhas. “Ele queria muito me dar uma casinha”, disse Helen. Para isso, acreditava na sorte através dos jogos da loteria federal. Aliás, “Miro” sempre foi um assíduo apostador, seja em bolões com amigos, seja na loteria.

Por volta de 1987, em São Borja, acertou e ganhou. Mas não levou dinheiro nenhum. Simplesmente, porque perdeu o bilhete. Na época, mobilizou a cidade toda em busca do papel. Até no lixão procuraram. Mas de nada adiantou. Jamais viu a cor da grana. “Eu diria que meu pai não era um homem de sorte”, disse a filha mais velha, Cristiane. De acordo com os familiares, o pai era apostador desde menino. E jogava sempre os mesmos números, numa sequência de datas de nascimento.

“Miro” era cuidadoso com os seus. Não se esquecia das datas importantes da turma. E era o primeiro a ligar nos aniversários de cada um. Além de dar os parabéns, ainda lembrava os demais. Uma das grandes características dele era, sem medo de errar, o fino trato com as pessoas. Tinha uma elegância e gentileza únicas. Todos paravam para escutar as histórias do seu passado. A bem da verdade é que “Miro” era um livro. Mas dependia apenas dele, abrir as páginas.

“Meu pai era uma das melhores pessoas que conheci. Generoso, amigo, coração enorme”, disse Cristiane. Ele torcia ao Internacional e tinha uma paciência de dar raiva. Contou ela que o pai adorava política, chegando a se filiar no velho PTB, cujos “caciques” eram Jango e Brizola, seus amigos. “Miro”, não falava sobre o Golpe de 64. Gostava apenas de lembrar as saídas de madrugada com Brizola. E sobre as viagens escondidas ao Uruguai, quando levava dinheiro ao ex-presidente.

Com a fisionomia parecida aos Brizola – rosto quadrado, “Miro” tinha uma prosa de parar o trânsito. Contava as histórias com o sotaque carregado pelos “Rs”, numa fala tipicamente sulista. Era gostoso ouvir. Quem não se esquece das histórias é Ivana Denise, filha de Vera, a segunda esposa. Mas que passou a considerá-lo como um verdadeiro pai.

Conta ela que entrou na vida de “Miro” ainda aos seis anos. Fruto de um relacionamento anterior, ainda se recorda do dia em que “Miroca”, como o chamava, a retirou da casa de uma tia para morar com ele e Vera. “Éramos muito pobres. Então eu morava com uma tia. E quando ele se juntou a minha mãe, correu me pegar para que eu ficasse junto a ela. Nunca vou me esquecer. E agradeço pelo seu gesto que, certamente, direcionou minha vida”, lembrou.

Ivana é dentista em Florianópolis. E, ao contar sua relação com “Miro”, se emocionou diversas vezes. “Miro” foi um verdadeiro pai. E resta a ela, as recordações de seus conselhos, de sua generosidade, de seu apreço humano e das palavras cruzadas, que ele a “viciou”. Definitivamente, ela não tem palavras que o descrevam.

“Miro” foi sepultado no cemitério de Itacurubi (RS), cuja última homenagem diz: “O melhor homem do mundo”

Morte

Depois de deixar Peabiru, em fevereiro de 2022, “Miro” acompanhou a filha, Kelen, a Passo Fundo. Ela havia acabado o relacionamento com o marido, rumando novamente ao Rio Grande do Sul. Então, levou o pai na “bagagem”. Morando juntos, “Miro” dormia numa noite de domingo. Era junho de 2022 quando se levantou. Dizia estar se sentindo mal. Ao caminhar caiu, batendo com a cabeça.

Embora ainda não soubesse, “Miro” estava tendo um AVC. Ele foi levado às pressas a um hospital de Passo Fundo. Permaneceu dois dias em observação. Mas no terceiro, foi vítima de um novo AVC, agora hemorrágico. Então, em 18 de julho daquele ano, após quase 40 dias internado, entrou em coma, não retornando mais aos seus. Morreu pobre, sem posses. Mas deixou um legado de pessoas que rasgam elogios ao caráter e a sua índole. Poucas vezes, senão nenhuma, este repórter viu uma unanimidade assim, quando até ex-esposas o adjetivam positivamente.

A morte não deixou que ele concluísse o livro que vinha escrevendo. Por vezes, as filhas leram algumas folhas escritas ainda à mão. Eram relatos sobre a infância, a agricultura, a família e, sobretudo, a amizade com João Goulart e Brizola. A obra passou a ser escrita em um notebook. Mas, mesmo colocado a uma severa pesquisa de buscas, nada foi encontrado até agora.

“Miro” morreu em Passo Fundo. Mas seu corpo foi encaminhado ao cemitério municipal de Itacurubi, no Rio Grande do Sul, junto a outros membros da família. Como última homenagem, foi escrito em sua lápide: “O melhor homem do mundo”.

João Goulart

João Belchior Marques Goulart nasceu em São Borja, em 1 de março de 1919. Conhecido popularmente como Jango, foi advogado e político, tendo sido o 24.º presidente do Brasil, de 1961 a 1964. Até 1961, era vice de Jânio Quadros. Mas acabou empossado como presidente após sua renúncia.

Ele continuou como presidente mais três anos, quando foi deposto pelos militares no Golpe de Estado de 1964. Antes disso, também foi o 14.º vice-presidente do Brasil, de 1956 a 1960, durante o governo do presidente Juscelino Kubitschek. Jango foi eleito vice-presidente com mais votos que o próprio presidente JK, e se tornou o primeiro político a ser reeleito para um segundo mandato consecutivo de um mesmo cargo na esfera do Poder Executivo (no caso, a Vice-Presidência da República).

As Reformas de Base propostas por Jango, mas não implementadas, moldaram o Estado brasileiro depois da redemocratização, inspirando a Constituição brasileira de 1988. Depois de exilado no Uruguai, Jango nunca mais voltou ao Brasil. Morreu no Uruguai, em 1976. Décadas depois, em 2014, o corpo foi exumado pela Polícia Federal do Brasil. Para a família, haviam indícios de que ele havia sido envenenado. Mas a perícia concluiu o caso como inconclusivo.

Leonel Brizola

Leonel de Moura Brizola nasceu em Carazinho, em 22 de janeiro de 1922. Foi engenheiro civil e político. Considerado um líder trabalhista, foi governador do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, sendo o único político eleito pelo povo para governar dois estados diferentes em toda a história do Brasil.

Viveu seus primeiros anos no interior do estado, mudando-se para Porto Alegre em 1936. Lá, deu prosseguimento aos estudos e trabalhou como engraxate, graxeiro, ascensorista e servidor público. Enquanto ainda estudava na UFRGS, ingressou na política, ficando responsável por organizar a ala jovem do Partido Trabalhista Brasileiro. Em um evento político, conheceu Neusa Goulart, irmã de João Goulart, com a qual se casou em 1950 e teve três filhos.

Em 1947, Brizola foi eleito deputado estadual pelo PTB. Tornou-se um político em ascensão no estado: em 1954, foi eleito deputado federal, com uma votação recorde. Dois anos depois, elegeu-se prefeito de Porto Alegre. E, em 1958, governador do Rio Grande do Sul. Como governador, tornou-se proeminente por suas políticas sociais e por promover a Campanha da Legalidade, em defesa da democracia e da posse de Goulart como presidente.

Em 1962, transferiu seu domicílio eleitoral para a Guanabara, estado pelo qual elegeu-se deputado federal. Durante o governo de Goulart, este e Brizola mantiveram uma relação tumultuada, mas uniram-se novamente antes do golpe militar de 1964. Depois que suas propostas de resistência não foram bem-sucedidas, Brizola exilou-se no Uruguai.

Voltou ao Brasil em 1979, depois de um exílio de quinze anos no Uruguai, nos Estados Unidos e em Portugal. No mesmo ano, fundou e presidiu o Partido Democrático Trabalhista, um partido social-democrata e populista. Em 1982, foi eleito governador do Rio de Janeiro, iniciando um programa de construção dos Centros Integrados de Educação Pública. Na eleição presidencial de 1989, ficou em terceiro lugar, com uma diferença inferior a 1% em relação ao segundo colocado.

Um ano depois, voltou a governar o Rio de Janeiro, sendo eleito no primeiro turno. A partir daí, não logrou êxito em nenhuma das quatro eleições que disputou, de vice-presidente de Lula da Silva em 1998 a senador pelo Rio de Janeiro em 2002. Faleceu, em 21 de junho de 2004, vítima de um infarto agudo do miocárdio.