Os “homens de Deus” na mira do MP
No dia 7 de abril, um homem de 37 anos, de baixa estatura, bigode ralo, corpo franzino, usando óculos e uma capa branca, chega a Barbosa Ferraz. Chamado de “apóstolo”, ele inicia uma série de visitas a casa de moradores. O objetivo era promover curas às enfermidades. Se dizendo um “homem de Deus”, não utilizava máscaras. Tão pouco, as pessoas visitadas, crentes na sua cura. Fotos comprovam as “bençãos”. Sua permanência ali, durou até o dia 21. E foi nesse período a realização de cinco cultos, cada noite, com mais de 100 fiéis – mesmo com decreto em vigência, proibindo aglomerações. Após os encontros, os casos de Covid dispararam na pequena cidade. Ainda não se pode afirmar que sejam decorrentes somente à igreja. Mas, para o município, a reunião não poderia ter acontecido.
O “apóstolo” não é o “Roque Santeiro”, das novelas globais. Ele tem nome e sobrenome: Eliomar Silva. Também se autoproclama o “Homem da Mão Cirúrgica”. Em seu perfil nas redes sociais, diz ser bacharel em Teologia e Ministro do Evangelho de Jesus Cristo, desde os oito anos de idade. Mas ele não chegou a Barbosa caído da carroceria de um caminhão, não. Veio a convite do Pastor Márcio. Em sua página do Facebook, o “apóstolo” definiu a chegada como a “Libertação e Exploração de Milagres”. Sua presença na cidade também foi divulgada através de rádios locais. E as promessas de cura, atraíram gente. Muita gente.
Eliomar postou fotos e vídeos de sua passagem. Num dos posts, mostra um homem idoso, se levantando da cadeira, descrevendo sua cura: “um homem aleijado foi curado”, enfatizou. No entanto, num dos comentários, a neta do homem, Lucylaine Machado, relatou: “Quanta mentira meu Deus. Meu avô nunca foi aleijado. Que vergonha desses falsos profetas. Única coisa que esse v…. fez na cidade foi espalhar coronavírus. Foi a casa de muitas pessoas. Sem máscara ele, e os fiéis”.
Outro vídeo mostra Eliomar realizando uma incisão na boca de uma mulher. Uma cena bastante forte, quando descreve ter retirado um suposto câncer. Utilizava uma pequena tesoura. Houve sangramento. Deitados no chão da própria igreja, fiéis se sujeitaram a incisões pelo umbigo. Num dos vídeos – as cenas são extremamente inquietantes -, Eliomar diz ter retirado um sapo da barriga de uma mulher.
Num dos últimos posts, o “apóstolo” disse que “foi muito forte o último dia em Barbosa Ferraz”. E certamente foi. Parte da população o acusa de ser o responsável pelo aumento dos casos de Covid.
À TRIBUNA, o pastor Márcio afirmou que Eliomar foi sim, convidado por ele a pregar em Barbosa Ferraz. Sua vinda promoveria curas às enfermidades, assim como, retiraria feitiçarias sobre as pessoas. “Muitas curas foram realizadas. Eu mesmo vi”, disse. No entanto, Márcio não aceita a acusação dos cultos terem sido os responsáveis pela disseminação do vírus na cidade. “É errado dizer isso. As ruas de Barbosa estavam cheias de gente. Os bares lotados”, disse. Questionado se havia alguma licença à realização dos encontros, revelou apenas ter “conversado com o pessoal”. Segundo ele, havia uma brecha em Brasília. “Podíamos fazer o culto, sim. Havia uma brecha pelo governo”, lembrou.
Márcio é descrito por moradores de Barbosa Ferraz como um verdadeiro “homem de Deus”. Um sujeito simples, capaz até de andar com os sapatos furados. Mas ele não está bem. Anda depressivo. Dias após o culto, a esposa, também pastora, adquiriu a Covid. Teve complicações. Foi internada. Intubada. Não resistiu. Mais uma vítima da doença. Nem mesmo as bençãos de Eliomar foram capazes de curá-la. “Ela tinha diabetes. Morreu por parada cardíaca”, disse Márcio. Na entrevista, também revelou já ser conhecido do “apóstolo”, anos antes, pras bandas de Minas Gerais. “Não quero falar mais sobre isso. Minha esposa partiu. O senhor é que a levou. Ela não pegou o vírus em lugar nenhum. Também não interessa mais isso”, disse.
Lucas Junqueira Bruzabelli Macedo, promotor de Barbosa Ferraz, revelou que solicitou ao delegado local a abertura de uma investigação, preliminar, sobre os fatos. “São supostos indícios que, uma vez confirmados, podem infringir o artigo 268 do Código Penal”, disse. Ou seja, incentivar, contribuir ou descumprir uma ordem do governo. No caso, promover aglomeração, disseminando o coronavírus. O promotor também confirmou haver uma denúncia formal sobre o caso, junto ao Ministério Público.
A denúncia foi realizada por Celso Ferreira Lima. Morador de Barbosa Ferraz, ele disse que juntou publicações das redes sociais, onde os “homens de Deus” colocaram mais de 100 pessoas num espaço onde cabiam apenas 15. “Eles pediram para as pessoas tirarem as máscaras e praticaram charlatanismo”, afirmou. Segundo ele, como cidadão, solicitou ao Ministério Público que verificasse se houve crime.
Município
Secretário de Saúde de Barbosa Ferraz, Leandro de Melo Silva afirmou que o município não forneceu qualquer tipo de liberação ao culto. “Não foi liberado, não”, disse. Com os casos ativos do vírus quadruplicando, cinco das pessoas infectadas no ritual morreram devido ao coronavírus, informou a prefeitura. Para coibir que novos casos se repitam, decreto assinado pelo prefeito Edenilson Miliossi (Cidadania), proibiu celebrações religiosas presenciais até o dia 17. A medida faz parte de um conjunto de restrições adotadas para conter a disseminação da Covid.
Segundo a prefeitura, a realização do culto de ‘cura’ aumentou de 40 para 179 os casos ativos do vírus, em 15 dias. Entre os frequentadores estavam pacientes que se tratavam de outras doenças, como câncer. Sem saber que estava infectado, um participante do encontro espalhou a doença aos demais, informou o município.
“Identificamos que várias pessoas foram infectadas durante esse culto. Por isso, estamos suspendendo todas as atividades deste tipo por dez dias, esperando que a situação melhore”, informou o prefeito, em entrevista à Rádio CBN. Desde então, cinco pessoas presentes no culto morreram por complicações da covid-19. Incluindo a esposa do pastor Márcio, de apenas 36 anos.
Vítimas
Willian Agostinho da Silva, 39, está vivo. A mãe, Lenilda, de 63, não. Ela contraiu a Covid e não sobreviveu. Morreu dia 02 de maio, e deixará um legado de saudades. A exemplo da esposa do pastor Márcio, Eliomar não conseguiu o que propusera. Por coincidência, Willian e Lenilda estavam no culto. Ou melhor, nos cultos. Os encontros, sempre lotados, aconteceram de terça a domingo, do dia 6 a 11 de abril. Willian e outras 4 pessoas da família também contraíram a doença. Lenilda não havia recebido nem a primeira dose da vacina.
Evangélica e muito fiel a Deus, a mãe foi “contagiada” pela presença do “apóstolo”. Participou de quase todos os encontros. E mais: ele foi até a casa de Lenilda. Lá, segundo Willian, Eliomar chegou para fazer a “Campanha do Salmo 191”. O Salmo era destinado às bençãos. Já o 191, era grana mesmo. A visita tinha um preço, a bagatela de R$191. “Minha mãe pagou. E meu tio deu outros R$191”, afirmou. A cada valor recebido, Eliomar dizia que os “fiéis depositários” seriam contemplados com a benção de Deus, ganhando uma casa, disse Willian.
Willian lembra que o “apóstolo” confirmou ter autorização da prefeitura para a realização dos cultos. De acordo com ele, muitas pessoas estavam sem máscaras. Não cabia tanta gente. “Devia ter umas 150 pessoas. Não existia ventilação nenhuma. Posso afirmar aqui que minha mãe morreu pela fé”, disse. Segundo ele, o caso deve ser investigado. “Quero justiça. Minha mãe morreu. Ela poderia estar viva”, argumentou.
Outra fiel, também presente nos cultos, disse que Eliomar prometia curas através de Deus, utilizando suas mãos. “Ele não cobrava diretamente. Mas distribuía envelopes para que os fiéis colocassem o valor”. Segundo ela, que preferiu não ser identificada, o “apóstolo” jogava os envelopes ao alto. Quando caíam, as pessoas os pegavam. No dia seguinte, retornavam com os mesmos, já com R$23 em seu interior. Mais uma vez, se tratava do Salmo 23. Quem doasse o valor, receberia um papel com o Salmo. Pra colocar na parede, na geladeira ou onde desejasse.
A fiel também revela que, a cada culto, Eliomar escolhia um grupo, entre 30 a 40 pessoas. Juntas, subiam ao altar. Assim que o encontro terminava, elas permaneciam. Um dos escolhidos, foi o próprio marido. “O apóstolo dizia que Deus havia escolhido cada uma delas. Era uma benção especial. Mas tinha um preço: R$365”, afirmou. A narrativa do “homem de Deus” também abrangia cnpjs com números banhados a ouro. Uma visão vinda dos céus.
Segundo ela, muitos empresários doaram os valores. “Ele tinha um poder de persuasão muito grande. Convenceu muita gente”, disse. Evangélica há anos, a mulher passou a desconfiar da vocação de Eliomar pelo seu “modus operandi”. Para ela, evangélicos fazem suas doações na igreja. Não existem valores fixados. Doa-se quanto puder. Mas neste caso, foi diferente.
Uma vez escolhidos, o “apóstolo” marcava uma visita na casa de cada um. Lá, pedia para que os “abençoados” montassem um pequeno altar, com roupas, fotos e uma garrafa com água. Nunca se esquecendo do envelope. É claro, com o dinheiro. Então, enquanto fazia a sua prece com uma das mãos, com a outra, apanhava a quantia. “Ofertas devem acontecer no altar da igreja. Como manda o coração. E nunca fora da igreja”, acredita. Para ela, o pastor Márcio também foi enganado. “Ele não tem participação nisso. É um homem simples. Do bem”, disse. Estima-se que as “bençãos” possam ter rendido algo em torno de R$100 mil.
Números preocupantes
Até o final de abril, Barbosa Ferraz estava com 798 casos confirmados de coronavírus e 19 óbitos. Além disso, os números apontavam 124 casos ativos, 35 suspeitos e 159 moradores em isolamento domiciliar.
Somente nos 13 primeiros dias de maio, a cidade registrou outros oito óbitos em decorrência do vírus, chegando atualmente a 27 mortes. Os casos confirmados aumentaram nos primeiros dias deste mês para 968 (170 novas confirmações). Atualmente o município tem 168 casos ativos, 18 suspeitos e 186 moradores em isolamento domiciliar.
A reportagem tentou localizar o “apóstolo” Eliomar Silva. Mas ele não foi localizado para se defender. Mesmo as tentativas via FaceBook, na sua página, não foram respondidas. Fica aqui o espaço aberto às suas respectivas posições sobre os fatos.