Desafios e avanços: impactos da intervenção precoce nos transtornos do neurodesenvolvimento

Os transtornos do neurodesenvolvimento têm se tornado um tema de crescente importância na sociedade. Uma pesquisa divulgada pelo Ministério da Saúde aponta que, em 2023, 12% das crianças brasileiras de até cinco anos apresentavam suspeita de atraso no desenvolvimento e não exibiam os comportamentos e habilidades esperados para essa faixa etária.

De acordo com uma análise realizada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) sobre atendimentos de clientes de planos de saúde, entre 2019 e 2023, houve um aumento de quase 5% no número do público de zero a 15 anos atendido por profissionais especializados no tratamento desses transtornos. Embora os dados possam não se referir exclusivamente a pacientes diagnosticados, a situação preocupa tanto profissionais quanto familiares.

A neuropsicopedagoga Ketlyn Karina Fernandes de Morais também vem observando um aumento da demanda por intervenções especializadas nos trabalhos que realiza em Campo Mourão. Ela é especialista em Transtornos do Espectro Autista (TEA) e Intervenção Precoce e atua há 5 anos nessas áreas, com foco em crianças com diagnóstico de TEA e também atrasos do desenvolvimento. Para a profissional, as escolas e a sociedade como um todo precisam estar cada vez mais preparadas para lidar com essas situações.

Os transtornos mais comuns que se destacam no campo do neurodesenvolvimento, segundo o Manual Diagnóstico DSM-5 – referência mundial em saúde mental –, são o TEA e o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Conforme a profissional, muitas crianças diagnosticadas com TEA apresentam comorbidades associadas, o que exige um plano de tratamento adaptado, que deve ser adaptado, para estimular dificuldades enfrentadas não só por essa condição, mas também por outras, como o TDAH ou o Transtorno Opositivo Desafiador (TOD).

A importância de um diagnóstico precoce e um tratamento adequado está diretamente ligada ao desenvolvimento cognitivo e emocional da criança, que precisa ser preparada para enfrentar os desafios de uma sociedade cada vez mais complexa. A neuropsicopedagoga reforçou que intervenções precoces têm um impacto significativo no desenvolvimento das crianças. “A neuroplasticidade do cérebro de uma criança é muito maior do que a de um adulto, a facilidade para se aprender é bem maior”, ressaltou. “Intervir precocemente é necessário e urgente”, completou.

Ketlyn usou um exemplo lúdico para explicar esse processo de desenvolvimento cerebral, a partir de uma analogia do cérebro com uma massinha de modelar. “É como se o cérebro da criança fosse uma ‘massinha de modelar’, e nós, enquanto terapeutas, podemos modelar esse cérebro de acordo com as necessidades de aprendizagem da criança. Intervir precocemente é necessário e urgente porque conforme a criança vai crescendo essa ‘massinha de modelar’ vai ficando mais dura e menos moldável, o que dificulta o processo de aprendizagem e de adquirir novas habilidades. E as famílias entendem quando elas veem tudo acontecendo”, descreveu.

“A neuroplasticidade do cérebro de uma criança é muito maior do que a de um adulto, a facilidade para se aprender é bem maior”, explica a neuropsicopedagoga Ketlyn Karina Fernandes de Morais, ao enfatizar que “intervir precocemente é necessário e urgente”

Intervenção precoce

Para muitos pais de crianças com diagnóstico de transtornos do neurodesenvolvimento, a intervenção precoce foi, e tem sido, crucial no tratamento dos filhos. Pedro Bonini, de quase 2 anos de idade, foi diagnosticado com TEA e, recentemente, com TDAH. Seu pai, Luigi, compartilhou a importância de buscar apoio logo cedo. “Desde o início da primeira consulta, já fomos orientados a buscar terapias que o ajudariam a desenvolver, tanto a fala como outras habilidades”, lembrou o pai da criança.

Ele contou que, apesar das dificuldades iniciais, como a grande fila de espera para consultas com neuropediatras, o processo terapêutico começou cedo, e os resultados são visíveis. “Hoje ele [Pedro] fala várias palavras, começou a formar frases, melhorou suas habilidades sociais e está muito esperto”, comentou. “Sabemos que ele tem muito a caminhar ainda, mas por ele ter começado as terapias bem cedo temos a certeza que crescerá e terá uma vida normal dentro do seu diagnóstico”, expressou.

Outro relato que mostra a relevância das intervenções adequadas com as crianças logo cedo é o de Drielli Maraiza Cardoso Pariz, mãe de Noah, de 6 anos, outra criança diagnosticada com TEA. “A intervenção precoce foi essencial no desenvolvimento do Noah, ajudando a superar desafios e estimular suas habilidades. Com o suporte certo no momento certo, ele pôde avançar com mais independência e qualidade de vida”, pontuou a mãe da criança, ao encorajar outros pais a também procurarem profissionais especializados na área para intervirem adequadamente, tendo a criança diagnóstico ou não.

Os desafios de educadores e terapeutas

Ketlyn reforçou que, enquanto terapeuta, o trabalho que ela realiza é muito mais eficaz quando há uma colaboração mútua entre escolas e profissionais especializados. Para isso, ela considera fundamental que os especialistas que atuam nessa área recebam e sejam apoio no momento da intervenção com os alunos. “Precisamos ajustar e implementar estratégias que o professor possa usar em sala com uma criança atípica sem prejudicar o desempenho dos outros alunos”, afirmou, ao lembrar que a realidade de grande parte das instituições de ensino é de salas com 15, 20 alunos, em alguns casos, com apenas um professor.

No entanto, essa colaboração ainda enfrenta obstáculos. Muitos professores se sentem sozinhos na tarefa de lidar com alunos com necessidades específicas, o que impacta diretamente a qualidade do ensino e a inclusão dessas crianças. Ketlyn observou que, enquanto o sistema educacional não entender essa necessidade, professores, terapeutas, famílias e principalmente as crianças irão sofrer sem o devido suporte.

Formação continuada

A realidade da educação no Brasil, quando se trata de preparação educacional para demandas de educação especial, ainda é um desafio. De acordo com os dados mais recentes do Ministério da Educação (MEC) sobre o assunto, até 2022, 94,2% dos professores regentes não tinham formação continuada nessa área.

As dificuldades decorrentes da falta de capacitação, por exemplo, são vistas na prática pelos profissionais da educação. “A formação continuada ofertada pelo Estado não prioriza essa demanda, tendo como foco principal capacitar os professores para lidar com os recursos educacionais digitais”, avaliou a professora Rebeca Moreira de Santana Aguiar, que leciona na rede pública de Campo Mourão.

Ela destacou que, embora haja profissionais capacitados no Atendimento Educacional Especializado (AEE), o apoio a alunos atípicos precisa ir além, com maior preparo dos professores da sala regular também. “É necessário haver capacitação para os professores do ensino regular para que eles possam atender as necessidades dos alunos e que esse apoio não se limite apenas ao Atendimento Educacional Especializado”, opinou a docente.

Além disso, a professora Rafaela dos Santos, também da rede pública, observou que, embora haja palestras e formações teóricas sobre transtornos do neurodesenvolvimento promovidas pelo município, durante a Semana Pedagógica, por exemplo, para ela, no cotidiano escolar, o suporte para intervenção ainda é insuficiente.

“Na questão teórica, a escola estaria bem embasada, porém na prática do dia a dia de sala de aula, a educação municipal deixa a desejar em questões de materiais diferenciados para trabalhar com os alunos e apoio de professores auxiliares em sala de aula para que esses alunos possam ter um atendimento diferenciado”, relatou.

Ketlyn reconhece que os professores não têm o dever de realizar diagnósticos e intervenções específicas, já que a responsabilidade deles é alfabetizar e ensinar os alunos. No entanto, eles precisam de apoio para se preparar para receber casos de crianças com transtornos e adaptar o ensino quando necessário, conforme ponderou. “Os professores sabem da necessidade, mas eles também são ‘reféns’ quanto a isso”, lamentou, acrescentando que a solução para muitos docentes que ela conhece é buscar conhecimento por conta própria para atender a essas demandas.